8 de janeiro de 2008

Você é inimigo ou é comida?

Marcos Morgado 06/01 a 08/01/2008


Eles apareceram silenciosa e repentinamente na varanda de trás de casa em um pequeno bando de cinco ou seis, um atrás do outro. Vieram atraídos por um pouco de arroz que caiu de um saco de lixo, e o que pra mim era desprezível, para eles era banquete.

Tentei ficar imóvel e perceber a alegre e agitada preparação para a refeição, mas tão logo me avistaram nervosamente voaram, assim como vieram, um atrás do outro. Como uma explosão de asas e penas. Como se com todo meu tamanho pudesse passar despercebido por visitantes tão ariscos e desconfiados.

Foram-se, arredios e velozes, deixando para trás um ignóbil banquete e uma profunda e inquietante lição. No curto tempo em que devassava a privacidade da refeição dos pequenos alados pude perceber que as coisas acontecem de uma mesma e constante forma, o que pode se dar também com espécies maiores e mesmo com humanos.

É deflagrado um mecanismo de fuga ou resistência, a cada aparente ameaça, próxima ou distante. Por instinto de preservação parece que o primeiro parâmetro de comparação e analise é o tamanho, seguido da inércia. Funcionaria mais ou menos assim:

Os pássaros (ou outro qualquer ser, mesmo humano) aproximam-se daquilo que imaginam ser potencialmente alimentar, analisando toda a área circundante, a procura de possíveis ameaças. Parece que desejam encontrar mais as ameaças que os alimentos. Desejam alimentar-se, mas antes de tudo não serem os próprios alimentos. Num segundo podem detectar o mais leve sinal de perigo, geralmente olhos (mais ainda se humanos).

Ao depararem-se com algo, analisam-no cuidadosamente. Não pode haver duvidas: Ou é inimigo ou é comida. A segurança ou saciedade não pode depender de nada um pouco mais complexo.

Ai ocorre o uso do primeiro parâmetro de analise do mecanismo, o tamanho: “É maior que eu? Não poderia comer. Não serve de alimento. Não é comida. Resta uma dedução lógica: é inimigo. Ação que a prudência exige: fuga”. Foi o que ocorreu quando me viram.

Se a comparação for de igualdade, segue o raciocínio: “É do meu tamanho? Pode ser comida. Mas talvez terei de lutar. Valera a pena? Ha alto grau de perigo de eu virar comida? Então não pode ser comida. Dedução cautelosa: é inimigo”.

Se a comparação for de inferioridade, o mecanismo infere: “É menor que eu? Pode ser comida. Mas talvez terei de lutar. Esta inerte? (Lembre-se que o segundo parâmetro de analise é a inércia). Está parado? Caso afirmativo, pode estar morto. Então é comida. Não esta inerte? Está fugindo? Então é comida. Está atacando? Então não pode ser comida. É inimigo”.

Foi o que se deu naquele dia em minha varanda. Os pássaros viram o arroz. “É menor que nos. Está inerte. Está morto. É comida. Regalemo-nos”. Ao me verem, no entanto, deduziram: “É maior que nós, mesmo inerte, parado. Não é comida. É inimigo. Fujamos”.

Em suma, com uma analise rápida e superficial intui-se se algo diante de si é inimigo ou comida. Não pode ser ambas as coisas. Pode ser ate que um inimigo vire comida ou uma comida que se transmute em inimigo. Mas nunca será ambas as coisas para o mesmo rival ao mesmo tempo.

Essa foi uma rasteira lição que um pequeno bando de pequenos pássaros nervosos e famintos me proporcionou. Lição que apliquei instantaneamente a vida humana, com suas necessidades pungentes de sobrevivência, tanto de defesa quanto de manutenção.

Nesta selva que se transformou o ambiente humano, vez ou outra temos que analisar as possibilidades a nossa frente. Ou nos deparamos com o sustento ou com a ameaça. No ambiente funcional ou familiar, nas empresas, famílias ou igrejas nossos mecanismos de fuga ou resistência estão constantemente alertas. Deparamos-nos com indivíduos e circunstancias sobre os quais nos indagamos quase sempre: é nocivo ou saudável? É perigo ou auxilio? Ou, de acordo com a analise simplória e superficial dos pequenos pássaros, é inimigo ou comida?

Então todo individuo passa pelo crivo de nossa analise dualista, onde ninguém pode situar-se em outra classificação. Como para os pequenos ou grandes animais, para nos, por vezes, nenhum ser humano pode ser ambas as coisas. Pode ser ate um inimigo que vire comida ou uma comida que se transforme em inimigo. Mas nunca se dará ambas as coisas numa analise do mesmo rival, ao mesmo tempo.

Está em risco nossas mais simples e prementes necessidades: a manutenção de nossa vida e família; nossa segurança empregatícia; a vitalidade de nossos cargos e funções na igreja, por exemplo; nosso prestigio ameaçado frente as amizades, com a chegada de um novo componente no grupo; os privilégios e preferências em meio a família, e uma série de circunstancias e indivíduos a nos fazer frente ou ameaçar-nos.

Ainda por instinto de preservação, se da o mesmo com os seres humanos: o primeiro parâmetro de comparação e analise é o tamanho, seguido da inércia. Funcionaria mais ou menos assim, como se deu com as aves:

Surgiu algum funcionário novo na empresa, assumiu um novo chefe na repartição, aquele departamento da igreja recebeu novo líder, chegou um novo aluno na escola, justo em nossa sala, nossa rua recebeu um novo vizinho, a família viu regressar uns primos que estavam longe.

Algo novo e surpreendentemente incomodo interceptou nosso seguro caminhar diário. Tendo como primeiro parâmetro de comparação o tamanho, analisamos o novo individuo (ou o antigo, em nova situação). “É maior que eu?” Traduzindo para as novas circunstâncias, seria: “O novo funcionário e formado e experiente? O novo chefe e jovem e capacitado? O líder na igreja inspira talento e energia? O aluno e bonito e inteligente? O vizinho e mais velho ou mais forte? Os primos são mais abastados ou angariaram a atenção de toda a família?”.

Em suma, de maneira rápida: “É maior que eu?” Caso a resposta for um assustador sim, a prudência exige fuga. E inimigo. E se ele e inimigo a comida sou eu. A minha cadeira pode vir a ser a dele, a promoção falhou, nosso prestigio periga naufragar, perderemos o atraente centro das atenções, o mana da fidelidade do grupo, as bênçãos e os carinhos da avo. Ele e o inimigo e somos a comida.

Resta-nos reaver a avaliação e considerar uma possível comparação de igualdade, seguindo o raciocínio: “Poderia ser do meu tamanho? Pode vir a ser comida. Mas talvez terei de lutar. Valera a pena? Ha alto grau de perigo de eu virar definitivamente comida? Então não pode ser comida. Dedução cautelosa: é inimigo.

Nos esquivamos, desdenhamos, construímos resistência aos projetos, sabotamos as propostas, engessamos as possibilidades, levantamos trincheiras e escudos, tentando arrebanhar outros para nosso exercito. Talvez cresçamos e forcemos uma igualdade de forcas. Se ainda promovendo energias contrarias a desproporção incomoda se refletir, resta a definitiva analise e ação: “é definitivamente inimigo. Fujamos prudente e honradamente. Não vencemos ao inimigo, porem não viramos comida.

Caso deslumbremos a mais leve possibilidade de uma comparação de inferioridade, o nosso auto-mecanismo de defesa infere: “É menor que eu? Pode ser comida.” O funcionário novo é estagiário, o novo chefe é desqualificado, o novo líder da igreja é neófito, o novo aluno é obeso e estrábico, o novo vizinho é tímido e arredio, os primos são intragáveis e não colecionam virtudes.

Respiramos mais aliviados e a fuga parece não ser necessária. “É mesmo menor que eu. Pode ser mesmo comida. Mas talvez terei de lutar”. Segue-se então o segundo parâmetro de analise, a inércia. “Esta inerte? Está parado?” Caso afirmativo, pode estar morto. Então é comida. O estagiário não e efetivado, o chefe deposto, o novo líder suspenso, o aluno reprovado, o vizinho vencido numa partida, os primos esquecidos nas fotos do fim de ano. “Viraram deliciosamente comida”. Mas há uma segunda possibilidade: “Não esta inerte? Move-se? Está fugindo? Então é comida.” Volte ao banquete.

Mas ai é que as coisas podem ficar angustiantes. Mesmo menores podem temerariamente revidar. “Está atacando? Então não pode ser comida. É inimigo”. É uma pena, mas não é arroz, e o prato pode ficar para depois. “Lute ou fuja”, apela nosso mecanismo. Se as coisas não ficarem confortáveis e ao invés de apreciadores tornarmo-nos apreciáveis, resta-nos a amarga energia da fuga. Alias, não podemos esquecer: num segundo podemos detectar o mais leve sinal de perigo, geralmente olhos (mais ainda se humanos).

Então deixamos, como os pássaros em polvorosa, arredios e velozes, para trás um frustrado banquete e mais uma profunda e inquietante lição: Melhor desprezarmos apetitosos grãos de arroz do que encarar um ser humano, que apesar de aparentemente inerte e quieto, pode transmutar-se instantaneamente de comida em inimigo.

E você? É inimigo ou é comida?