Sem palavras
Marcos Morgado 18/01/06
Há muito, nos comunicávamos. Estimo que há um ou dois séculos. Não estou bem certo, mas creio que éramos melhores que somos. De várias formas, nos comunicávamos.
Sei que é uma heresia (que não saibam que assim penso) ou mesmo um perigo contra a humanidade, mas tenho firme convicção: deveríamos voltar a esta forma atrasada de ser, este retrocesso na raça, e de alguma forma nos comunicarmos. Estou certo que éramos mais completos, mais edificados e ouso dizer, mais felizes.
Mas não mais o fazemos. Somos um emaranhado de células sem sinapses. Correntes sem elos. Pares sem palavras. Quer por som, letras ou sinais, nunca mais nos comunicamos.
Não sei se deliro, mas dia desses vi no jornal uma palavra. Uma única e disfarçada palavra. Sei que há muito não usamos palavras nos jornais. São só figuras, montagens e cores. Tão somente. Isto basta para suscitar em nós graça e prazer, e o suficiente a bolir em nossa mente e sensações. Mas vi uma palavra, solteira e ameaçadora. Juro que vi.
Não sei quando, mas as palavras, sei bem, foram abolidas de nossos jornais e revistas, telas e panfletos, cartões e qualquer mídia ou suporte. Há muito que nossas comunicações não se baseiam nessas pobres junções de caracteres e sinais, traços de uma humanidade retrógrada, que teimava em manter contato entre si. Faziam-nos perder precioso tempo em comunicação. Era um momento em que os homens necessitavam expor suas idéias e recebê-las em retorno, pobre humanidade adolescente, carente de expansão e desenvolvimento.
Por isso aboliram o contato humano. Não se escrevia mais. Nem se falava. Ou se imprimiam obsoletas palavras. Não refletiam pensamentos nem informavam o que quer que fosse. Ninguém tinha o direito de transpor sua mente à outra mente. Seus desejos e ideais eram somente seus. Aos poucos afastadas, por fim coibidas, as palavras e conversações foram estimadas por ofensoras e progressivamente proibidas.
Sem mensagens ou telefonemas, cartazes ou conversações. Símbolos e gestos, músicas ou periódicos. Assim fez-se surgir uma nova humanidade. Sem falas ou expressões.
Hoje divorciamo-nos de todo atraso e empecilho que é a comunicação. Pensamos por si só. Sentimo-nos. Retemos nossos pensamentos e sensações exclusivamente conosco. Assim nos formaram, assim procedemos. Aprendi que o homem é uma ilha, um fóssil, e imenso monólito mudo. Uma caixa absurda de conteúdo lacrado, sigiloso. Hermético.
Mas crescentemente sou tomado por outros princípios. Outros propósitos. Resisto a pensar que precisamos todos nos comunicar. De minha parte empreendo esforços para mais uma vez comunicarmo-nos. Munido de algumas páginas fracionadas, forço o reconhecimento de algum sentido naqueles traços impressos. Tempos atrás tinha visto coisas assim, numa parte escondida de minha casa. Volto a reconhecer umas letras e sinais, acentos e grafismos. É que recebi de herança um porão repleto de palavras. Ninguém sabe, mas ousei guardá-las a uma oportunidade. Quem sabe, pensava eu, não voltamos a usá-las?
É um copioso arsenal de palavras. Jornais baios, revistas descoloradas, cédulas inválidas, letras de música, bulas de remédios. São fluxos de palavras a preencher a mesa, a tarde e minha mente em polvorosa. Mergulho, fôlego em suspense, em mares de palavras. Há palavras para o mundo inteiro. E nós sem usá-las.
Pesquiso-as, amanso-as, reagrupo-as, decifro-as. E passo a usá-las. Tenho a inabalável certeza que seríamos melhores com elas. Irmano letras antes ímpares. Soldo uma a outra e ouso formar palavras, conceitos, idéias, comunicação. Agora são frases inteiras. Explodo em mensagens a atingir paredes, a alçar chaminés, a escorrer pelo telhado, a tomar o gramado em direção às casas mudas e ruas silenciosas.
As pessoas não sabem o bem que fazem as palavras. O que pode duas delas juntas.
Temo descobrirem desejar comunicar-me. E bem que desejo. Ser letreiro e farol. Enviar minhas emoções retidas em frases inteiras a subir os montes, atravessar as cidades, tomar o continente e riscar os mares onde outras pessoas possam me sentir, me conhecer, me receber e retribuir.
Sonho enviar cartas, compor canções, imprimir uma floresta de palavras. Abolir a mudez da humanidade. Confrontar o silêncio de nossa civilização. Regredir ao tempo em que comunicávamos. Estou certo que éramos, ouso dizer, mais felizes. E ainda o seremos.
Minhas palavras, rebeldes agentes da comunicação, entram em lares, tomam repartições, assaltam os mais altos andares do governo vigente. Fui longe demais. Não perdoarão minha transgressão. Minhas palavras causam transtorno nos sinais, assombro nas casas e perplexidade na humanidade. Devo ser caçado. Emudecido. Finalizado.
A luz e o som da sirene em minha calçada informam que minhas palavras alçaram os limites estabelecidos. E que a humanidade não está pronta para o mais tênue e superficial relacionamento. Sou detido. Algemado. Circunscrito. Só não recebo nem mandato escrito nem voz de prisão, pois os truculentos homens cumprem as leis, e ambos, voz e mandato encontram-se sob proibição. Mas não resta a dúvida que fui longe demais.
Novamente incomunicável, conservam-me recluso. Sem letras nas roupas, nem números na cela, sou retido com vários transgressores mudos. Ou silenciados. Passo dias sem ouvir palavra. Sem ler que fosse riscos de dias nas paredes. Não há ordens, nem lamentos, nem aviso nas portas. Só uma solitária e silenciosa cela. Onde sou almejado por inúmeros pares de olhos incandescentes.
Desvio a vista para outros pontos de minha solitária. Uma grade, um cobertor, e um único recipiente que ora recebe água, ora comida, ora outros detritos. Além dessas coisas, somente eu e um furo na parede. Aproximo-me. Firmo uma única vista à procura de coisa nenhuma naquele furo na parede. Encontro algo. Introduzo dedos em pinça e com sofreguidão resgato meu valioso objeto. É a fração de uma página. Com dúzias de palavras.
Os olhos sedentos dos outros presos faíscam atenção sobre meu raro exemplar impresso. Desdobro com ansiedade e cautela. Reconheço signos e caracteres. Ninguém ali sabe a pólvora que resulta de pelo menos duas letras que se juntam. É uma mensagem. Ouso anunciá-la a todos os ouvidos presentes.
Daquele amarelado papel pode surgir minha definitiva condenação. Ou uma nova humanidade.
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