7 de março de 2009

Urbi et Orbis

Marcos Morgado

36°15'50.32"N
29°59'15.08"E
Myra, Turquia

Krmar tem um manto multicor sobre si, obra de tapeçaria turca. Cabelos negros esvoaçam ao vento que desalinha os verdes cabelos das montanhas. Rebanhos pontilham de branco e mel as paisagens aveludadas dos montes que avista de sua janela. Vê cemitérios de longa ancianidade cravados nas frias costas rochosas. Nas tumbas de Myra o sangue e a hereditariedade de Krmar repousam num sono ancestral, longe do furor das vias ancarenses e dos navios que rasgam o Bósforo.

Recebe a energia matinal de um cacik ao funcho e páprica, purê de frutas, queijo branco e mel, sorvendo as borras de chá negro. Desfila, preguiçoso, sua silhueta ao lombo de um dromedário sobre os casebres rústicos marcados a bala das milícias curdas. Krmar ainda não entende, mas jamais poderia escolher sua fé, sem deixar sua vida sobre o chão que acalenta tantas outras. O frio da noite é cortado pelo fio de uma toada lúgrebe, entoada do alto de uma antiga mesquita.

Seu pai não amou sua mãe, nem sua mãe ansiou por seu pai, mas casaram-se pelo comércio de seu avô e pela vida de sua avó. Metade de sua família alcançou o mesmo destino e Krmar aprendeu que nascer não é sempre fruto do ato de amar.

Brinca com a arma que ganhou aos seis anos, alcançando, ardilosamente espreitado, numerosos inimigos fictícios. Prepara-se em sua tenra e vertiginosa idade para correr mundo estampado no noticiário internacional como valente e solitário guerreiro, pontilhando fragmentos sobre vitimas inocentes como sua infância.

11°33'0.00"N
23° 6'0.00"E
Kabar, Sudão

Djani joga pedras num tabuleiro imaginário sobre o manto vermelho da terra ressecada, qual sangue derramado, vertido das veias dos filhos da África. Tem a pele negra e reluzente, ardendo sob o sol escaldante, e os sulcados pés coloridos pela areia ruiva que os cobre como a uma bota.

Olhos como duas pérolas negras, profundos e ofuscantes. Nele refletem-se dunas a desfazerem-se com o vento da noite fria. Coleciona raízes secas e degusta escorpiões grelhados na fogueira de gravetos duplamente ressecados.

Jamais comeu pêssegos. Viu uma única vez um khawadja. A imagem fotografada em sua mente lhe recobra inesquecíveis perguntas: “Como pode ter uma pessoa a cor branca?” “Será que podemos enxergar a sua alma?” “haverá água em seu mundo?”.

Viu seus pais, parentes e seus 16 amigos tracejados por vorazes animais ou por mais ainda vorazes balas inimigas. Não sabe que está a poucos dias de ser o próximo. Expõe seus dentes de marfim num sorriso inocente ao ver um fio d’água a 45 quilômetros de seu casebre de palha, barro e toras vergadas.

Sonha um dia levar um cântaro de água para à noite dessedentar a si e ao seu cão. Não sabe haver céu, onde moram os anjos. Sabe apenas haver chão, onde morrem os homens.

78°15'10.22"N
15°42'28.62"E
Moskushamn, Svalbard

Yodl nunca viu seu chão sem neve. Seu imenso mundo branco poucas vezes recebeu os tímidos e rápidos raios de sol. Atiça a matilha a uma crescente corrida contra o tempo, com seu trenó riscando um constante e alvo itinerário de onde avista parca vegetação.

Já ouviu sua voz refletida nas geleiras, assim como reflete a constante e ofuscante luz de um branco invariável. Aponta seu lar num alvo borrão do mapa. Yodl vive cercado de águas glaciais por todos os lados.

Imutáveis rochas cobertas de alvo manto o rodeiam trazendo o sol, que por meio ano brilha na noite desta terra sem árvores. Poucas vezes vê seus pais, que extraem o negro carvão, no coração negro das minas escuras, como escura é a noite de outra metade do ano em seu frio planeta escuro.

Apanha pinhas que guarda em sua pele de foca estampada na parede de tábuas de seu pequeno e aconchegante quarto. De sua pequena janela divisa crianças que ameaçam brincar, de faces rubras como risonhas maçãs. Quem ousaria sorrir nesta terra de duas estações? Parece improvável, mas Yodl já sorriu. E deseja alcançar o dia em que encontrará uma nova razão para fazê-lo.

15°55'38.31"S
5°43'2.16"W
Jamestown, Saint Helena

Jewel cobre os olhos com a mão. Cancela a luz ofuscante do sol e mira o horizonte. Do seu ponto de vista, a terra é azul, como do de Gagarin. Ou a terra é água. Ultimo lar do francês imperador, sua pátria é um microbial ponto flutuando no oceano, cercado do interminável ruído do mar. Não coleciona conchas nas praias, pois em seu mundo praias não há. Sua pátria é uma ilha, assim como seu coração.

Seu calmo e invariável habitat é um parto da violência vulcânica. De onde quer que se olhe seu horizonte é céu e mar. Quadro verde azul grafando a retina. Dia e peixes como estrelas no mar. Noite e estrelas como peixes no céu.

As emoções de Jewel são díspares e inesperadas, como as variações das altas montanhas cortadas por profundos e misteriosos vales. Nos imensos paredões de rocha vulcânica rompem violentas ondas, pintando o ar com um longo arco-íris, num som constante e rítmico, grafado na memória de Jewel, como a voz de sua mãe. Ou como a voz do vento cortante com cheiro de sal.

A pequena cidade de Jewel tem apenas uma estrada, qual veia aberta sobre toda ilha, onde flui a vida e o tempo de seu povo. Que pode fazer uma pequena menina num lugar que é todo rocha, todo céu e tudo mar? Seu mundo cabe todo numa pequena estrada, sulcada num raso vale, nas costas nuas da ilha, cravada na imensidão azul do centro do planeta água.

8 de janeiro de 2008

Você é inimigo ou é comida?

Marcos Morgado 06/01 a 08/01/2008


Eles apareceram silenciosa e repentinamente na varanda de trás de casa em um pequeno bando de cinco ou seis, um atrás do outro. Vieram atraídos por um pouco de arroz que caiu de um saco de lixo, e o que pra mim era desprezível, para eles era banquete.

Tentei ficar imóvel e perceber a alegre e agitada preparação para a refeição, mas tão logo me avistaram nervosamente voaram, assim como vieram, um atrás do outro. Como uma explosão de asas e penas. Como se com todo meu tamanho pudesse passar despercebido por visitantes tão ariscos e desconfiados.

Foram-se, arredios e velozes, deixando para trás um ignóbil banquete e uma profunda e inquietante lição. No curto tempo em que devassava a privacidade da refeição dos pequenos alados pude perceber que as coisas acontecem de uma mesma e constante forma, o que pode se dar também com espécies maiores e mesmo com humanos.

É deflagrado um mecanismo de fuga ou resistência, a cada aparente ameaça, próxima ou distante. Por instinto de preservação parece que o primeiro parâmetro de comparação e analise é o tamanho, seguido da inércia. Funcionaria mais ou menos assim:

Os pássaros (ou outro qualquer ser, mesmo humano) aproximam-se daquilo que imaginam ser potencialmente alimentar, analisando toda a área circundante, a procura de possíveis ameaças. Parece que desejam encontrar mais as ameaças que os alimentos. Desejam alimentar-se, mas antes de tudo não serem os próprios alimentos. Num segundo podem detectar o mais leve sinal de perigo, geralmente olhos (mais ainda se humanos).

Ao depararem-se com algo, analisam-no cuidadosamente. Não pode haver duvidas: Ou é inimigo ou é comida. A segurança ou saciedade não pode depender de nada um pouco mais complexo.

Ai ocorre o uso do primeiro parâmetro de analise do mecanismo, o tamanho: “É maior que eu? Não poderia comer. Não serve de alimento. Não é comida. Resta uma dedução lógica: é inimigo. Ação que a prudência exige: fuga”. Foi o que ocorreu quando me viram.

Se a comparação for de igualdade, segue o raciocínio: “É do meu tamanho? Pode ser comida. Mas talvez terei de lutar. Valera a pena? Ha alto grau de perigo de eu virar comida? Então não pode ser comida. Dedução cautelosa: é inimigo”.

Se a comparação for de inferioridade, o mecanismo infere: “É menor que eu? Pode ser comida. Mas talvez terei de lutar. Esta inerte? (Lembre-se que o segundo parâmetro de analise é a inércia). Está parado? Caso afirmativo, pode estar morto. Então é comida. Não esta inerte? Está fugindo? Então é comida. Está atacando? Então não pode ser comida. É inimigo”.

Foi o que se deu naquele dia em minha varanda. Os pássaros viram o arroz. “É menor que nos. Está inerte. Está morto. É comida. Regalemo-nos”. Ao me verem, no entanto, deduziram: “É maior que nós, mesmo inerte, parado. Não é comida. É inimigo. Fujamos”.

Em suma, com uma analise rápida e superficial intui-se se algo diante de si é inimigo ou comida. Não pode ser ambas as coisas. Pode ser ate que um inimigo vire comida ou uma comida que se transmute em inimigo. Mas nunca será ambas as coisas para o mesmo rival ao mesmo tempo.

Essa foi uma rasteira lição que um pequeno bando de pequenos pássaros nervosos e famintos me proporcionou. Lição que apliquei instantaneamente a vida humana, com suas necessidades pungentes de sobrevivência, tanto de defesa quanto de manutenção.

Nesta selva que se transformou o ambiente humano, vez ou outra temos que analisar as possibilidades a nossa frente. Ou nos deparamos com o sustento ou com a ameaça. No ambiente funcional ou familiar, nas empresas, famílias ou igrejas nossos mecanismos de fuga ou resistência estão constantemente alertas. Deparamos-nos com indivíduos e circunstancias sobre os quais nos indagamos quase sempre: é nocivo ou saudável? É perigo ou auxilio? Ou, de acordo com a analise simplória e superficial dos pequenos pássaros, é inimigo ou comida?

Então todo individuo passa pelo crivo de nossa analise dualista, onde ninguém pode situar-se em outra classificação. Como para os pequenos ou grandes animais, para nos, por vezes, nenhum ser humano pode ser ambas as coisas. Pode ser ate um inimigo que vire comida ou uma comida que se transforme em inimigo. Mas nunca se dará ambas as coisas numa analise do mesmo rival, ao mesmo tempo.

Está em risco nossas mais simples e prementes necessidades: a manutenção de nossa vida e família; nossa segurança empregatícia; a vitalidade de nossos cargos e funções na igreja, por exemplo; nosso prestigio ameaçado frente as amizades, com a chegada de um novo componente no grupo; os privilégios e preferências em meio a família, e uma série de circunstancias e indivíduos a nos fazer frente ou ameaçar-nos.

Ainda por instinto de preservação, se da o mesmo com os seres humanos: o primeiro parâmetro de comparação e analise é o tamanho, seguido da inércia. Funcionaria mais ou menos assim, como se deu com as aves:

Surgiu algum funcionário novo na empresa, assumiu um novo chefe na repartição, aquele departamento da igreja recebeu novo líder, chegou um novo aluno na escola, justo em nossa sala, nossa rua recebeu um novo vizinho, a família viu regressar uns primos que estavam longe.

Algo novo e surpreendentemente incomodo interceptou nosso seguro caminhar diário. Tendo como primeiro parâmetro de comparação o tamanho, analisamos o novo individuo (ou o antigo, em nova situação). “É maior que eu?” Traduzindo para as novas circunstâncias, seria: “O novo funcionário e formado e experiente? O novo chefe e jovem e capacitado? O líder na igreja inspira talento e energia? O aluno e bonito e inteligente? O vizinho e mais velho ou mais forte? Os primos são mais abastados ou angariaram a atenção de toda a família?”.

Em suma, de maneira rápida: “É maior que eu?” Caso a resposta for um assustador sim, a prudência exige fuga. E inimigo. E se ele e inimigo a comida sou eu. A minha cadeira pode vir a ser a dele, a promoção falhou, nosso prestigio periga naufragar, perderemos o atraente centro das atenções, o mana da fidelidade do grupo, as bênçãos e os carinhos da avo. Ele e o inimigo e somos a comida.

Resta-nos reaver a avaliação e considerar uma possível comparação de igualdade, seguindo o raciocínio: “Poderia ser do meu tamanho? Pode vir a ser comida. Mas talvez terei de lutar. Valera a pena? Ha alto grau de perigo de eu virar definitivamente comida? Então não pode ser comida. Dedução cautelosa: é inimigo.

Nos esquivamos, desdenhamos, construímos resistência aos projetos, sabotamos as propostas, engessamos as possibilidades, levantamos trincheiras e escudos, tentando arrebanhar outros para nosso exercito. Talvez cresçamos e forcemos uma igualdade de forcas. Se ainda promovendo energias contrarias a desproporção incomoda se refletir, resta a definitiva analise e ação: “é definitivamente inimigo. Fujamos prudente e honradamente. Não vencemos ao inimigo, porem não viramos comida.

Caso deslumbremos a mais leve possibilidade de uma comparação de inferioridade, o nosso auto-mecanismo de defesa infere: “É menor que eu? Pode ser comida.” O funcionário novo é estagiário, o novo chefe é desqualificado, o novo líder da igreja é neófito, o novo aluno é obeso e estrábico, o novo vizinho é tímido e arredio, os primos são intragáveis e não colecionam virtudes.

Respiramos mais aliviados e a fuga parece não ser necessária. “É mesmo menor que eu. Pode ser mesmo comida. Mas talvez terei de lutar”. Segue-se então o segundo parâmetro de analise, a inércia. “Esta inerte? Está parado?” Caso afirmativo, pode estar morto. Então é comida. O estagiário não e efetivado, o chefe deposto, o novo líder suspenso, o aluno reprovado, o vizinho vencido numa partida, os primos esquecidos nas fotos do fim de ano. “Viraram deliciosamente comida”. Mas há uma segunda possibilidade: “Não esta inerte? Move-se? Está fugindo? Então é comida.” Volte ao banquete.

Mas ai é que as coisas podem ficar angustiantes. Mesmo menores podem temerariamente revidar. “Está atacando? Então não pode ser comida. É inimigo”. É uma pena, mas não é arroz, e o prato pode ficar para depois. “Lute ou fuja”, apela nosso mecanismo. Se as coisas não ficarem confortáveis e ao invés de apreciadores tornarmo-nos apreciáveis, resta-nos a amarga energia da fuga. Alias, não podemos esquecer: num segundo podemos detectar o mais leve sinal de perigo, geralmente olhos (mais ainda se humanos).

Então deixamos, como os pássaros em polvorosa, arredios e velozes, para trás um frustrado banquete e mais uma profunda e inquietante lição: Melhor desprezarmos apetitosos grãos de arroz do que encarar um ser humano, que apesar de aparentemente inerte e quieto, pode transmutar-se instantaneamente de comida em inimigo.

E você? É inimigo ou é comida?

13 de fevereiro de 2007

A impossível história

Marcos Morgado 11/02/07

As dores de Mara
Seriam sentidas por Frota
Caso se soubessem vivos
Se ao menos trocassem rota.

Mas é Décio quem as recebe
Pois ele as pos nela,
Quando lívidos uniram dentro
Os gametas de cada um

Ele é pai de cinco
Três dois quais Mara não os dera
Sendo os que receberam
Os genes e as cismas de Vera

Que adora Frota
A quem cúmplice espera
Sorver do mesmo copo a cicuta
De uma bebida severa

Que já tornaram por hábito
Como a valsa que os dedos travam
Nas retas negras do pelo
Sobre a cabeça de Vera

Cetim que estaria melhor
Na alva pele de Nara
A que a condessa austríaca
Lhe fora por tetravó

Exala um perfume que veste
O corpo robusto de Erasmo
De duro e ausente pai sírio
E triste mãe libanesa

Consome dois ou três charutos
Entre livros que absorve
Enquanto Tânia no andar de cima
O visaria pela sacada

Contraiu a Tânia dorida
Imatura núpcias forçada
Fez do dionisíaco Cortez
O dono e fonte de seu sobrenome

Não fosse a prematura prenhez
Negaria laço ao farsante
A quem Laura desposaria
Em tirânica insubmissão

E reduziria o apetite
Ao Cortez por suas amantes
Lhe atrelaria freios
E lhe dissolveria o afã.

Sua história de amor não teria
Entrelaços com a fúlvia Roxane
Sabida pela ferida Tânia
Por cartas e batom na blusa.

Roxane, a ruiva adolescente
Devota apreço ao Nolasco
De curtos pelos griz
E lauta conta conjunta

A quem a virulenta Bruna
Transformou em duro passado
Rasgando a alma e a vida
Como a navalha de suas palavras

Coleciona sete idiomas
E fartos cabelos no nariz
Com ela sonhos alcançados
E metas por realizar

A desposaria em Bali
De um horizonte ocre
Sob a silvana lua
Com a fervente ninfa

A nubente vívida
Sob trajes anis
E bege grinalda
Sorve rubro copo
De lisérgicas papoulas

Ambos assim selariam
O único amor provável
E tornariam plausível
Esta impossível história.

5 de julho de 2006

A Guerra dos Brinquedos

Marcos Morgado 03/07/06

Havia apenas duas caixas registradoras mecânicas, tão antigas quanto suas operadoras, mascaradas por pesada maquiagem. Estavam ali desde a inauguração da loja. O piso era de borracha desgastada preta. Quase todos soltos. Receberam os pequenos passos que hoje retornam, já maduros, com outros passos menores. São adultos com seus filhos, que quando crianças também já adentraram a loja em desabalada correria, a procurar dentre tantos, o brinquedo de seus sonhos.

Hoje trazem seus pequenos a percorrerem velozes entre estantes e gôndolas, vitrines e os muitos desesperados brinquedos, aos quais examinam sem a menor parcimônia ou cuidado. Manuseiam os indefesos objetos como destros torturadores nazistas.

Era uma loja que comercializava alegria, o orgulho de seu dono. Há brinquedos ali que podem estar desde os tempos iniciais da loja, abandonados quer por fealdade ou desconjuntura, quer por terem ficado cravados no tempo, trocados por novidades e engenhocas mais modernas e tecnológicas.

Na entrada da noite o ancião comerciante fiscalizava cada corredor e punha os brinquedos caídos ou testados em seus devidos lugares. Alguns pareciam sair por conta própria de seus endereços. Troca as pilhas dos brinquedos de teste, assegurando surpresa e alegria sempre novas, a cada inicio de dia.

Após minuciosa revista em toda loja, baixava os disjuntores um a um, negando luz a cada fila, até mergulhá-la toda na penumbra. O ranger do fechar da porta enferrujada anunciava a total solidão dos brinquedos e o silêncio cabal que se lançaria sobre a loja. Só o bip constante e pausado do alarme passava a ser ouvido.

Sobre as prateleiras jaziam os brinquedos perfilados em suas caixas ou amontoados em gôndolas e bancadas de promoção. Dormentes, aguardavam o amanhecer sem qualquer expressão ou desacordo. Emudeciam-se.

Silêncio. Escuridão. Um fraco facho de luz vindo do letreiro da tabacaria rasga a vidraça da porta, alcançando uma faixa da prateleira. Os inúmeros olhos de plástico dos brinquedos todos convergiam para lá.

Uma caixa range e tremula. Ela é única dentre todas as outras. Amarelada pelo sol de décadas, tem todas as suas bordas poídas. Seu plástico frontal já embaçado revela um astronauta cuja roupa espacial antes cinza apresenta uma cor inqualificável, razão pela qual jamais saiu daquela prateleira, por anos. Ninguém deseja mais astronautas, quanto mais em trajes cuja cor não recebe nome.

Foi lançado em comemoração da chegada do homem à lua, orgulho dos adultos e aspiração dos infantes da época. Todos queriam ter um. Até o desvanecer do sonho espacial. Foi trocado pelos primeiros robôs eletrônicos automáticos, com luzes no peitoral, voz metálica e rodinhas nos pés. Foi-se uma geração de astronautas. Aquele ficou.

Submisso por dezenas de anos, reúne forças no remorso do desprestígio ou no desejo de liberdade. Os fiapos já poídos que o prendiam à caixa esfarelada não resistiram ao vigor do viandante espacial e seu vislumbre do mundo exterior à loja. Aquela é a noite decisiva. Liberdade afinal! De mero objeto a um ser livre. E dono de seu destino.

A caixa trepidava como os corações dos outros brinquedos. Todos suspendiam a respiração. A aba lateral se abre. Com o fôlego ainda suspenso, miravam o feixe de luz a revelar um lacônico slogan com letras douradas sobre o fundo anil: “Rumo ao ano 2000”. Era o que de mais futurístico havia. Uma foto do passo de Amstrong marcados em solo lunar ilustrava a frente da caixa. Raios multicores saiam detrás do nome do astronauta. Haviam armas e adereços anexos como bônus. Ele os levará, por precaução.

Subitamente vê-se fora da caixa a luva e a bota, a prepararem impulso ao astronauta, que num movimento comedido deixa para trás seu antigo lar. Os brinquedos soltam unânimes ruídos de interjeição. O astronauta estava livre de sua prisão de papelão, e com urgência cronométrica salta da prateleira em direção ao espaço.

Inexplicavelmente sua queda é refreada por uma gravidade seis vezes menor, idêntica à da lua, residência dos sonhos de qualquer cosmonauta. Ele flutua e move-se qual ballet nos ares, aterrissando suavemente no piso da loja, como fora no satélite terreno. E desaparece em slow motion ao fim do corredor.

Atônitos, os brinquedos vislumbram a única oportunidade de libertação das mãos das violentas crianças e apressam-se a deixar suas caixas, sacolas e prateleiras. Centenas de caixas abrem-se simultaneamente. Outras tantas precipitam-se das alturas. Imitam seu precursor e escapam para todas as direções. Uns usam cordas de pular e deslizam para a liberdade. Outros lançam mão de skates ou patins para agilizar sua fuga.

A excitação e a balburdia irrompem na pacata loja. Em poucos minutos a confusão se generaliza e os brinquedos ficam incontroláveis. Pipas riscam o céu, furiosas com suas linhas cortantes. Bambolês detém vários animais aterrorizados. Bolas de gude, qual minas, lançam ao chão os menos precavidos. Piões riscam velozes uma trilha de colisões. Estalinhos crepitam qual chuva de fogo sobre as cidades de blocos de madeira. Uma quadrilha de heróis de plástico refugiam-se na casas de boneca.

Um monstro verde de borracha mole alcança o corredor de saída. Mas a única porta da loja está lacrada com cadeados e a fuga se revela impossível. A agitação dos brinquedos ativa o alarme. Desespero infernal se apossa da maioria.

Um sardônico stegossauro explode, num gravíssimo rugido, as várias prateleiras de vidro, pontilhando no espaço mil fragmentos letais, cuspindo morte e luzes multicores na refração do único facho de luz a iluminar a guerra.

Da seção de brinquedos raros libertam-se de suas caixas lacradas musculosos bonecos com cabelos e barbas quase reais. As etiquetas grafadas com a terminologia Falcon informam que possuem alto know-how bélico. Tomam de assalto a seção de armas, detendo canhões lasers e espadas cinzentas. Desviam um trem de seus trilhos e rumam em direção à saída. Usam um pequeno telescópio para antever o inimigo. A prosaica guerra toma ares de guerrilha.

Um robô semi-transparente oriental encurrala um ridículo palhaço de pano entre a bicicleta e um quadro-negro. A peleja seria desigual se o boneco maquiado não descobrisse, próximo e disponível, um poderoso sabre de luz, o qual alcança em uma única cambalhota. Ato letal. Não percebeu o alerta da caixa: “Pilhas não disponíveis”. A peleja foi desigual. Morreu o palhaço num último polichinelo.

Sem mostrar condescendência ou misericórdia, a esguia bailarina encena passos de ninja, saltando da romântica caixinha de música para a sangrenta arena de guerra. Dois pelotões rivais emergem da caixa escrita Combate, traçando planos de ataque à bandeira adversária. Canhões expelem mísseis e projéteis desde navios e submarinos estrategicamente posicionados no tabuleiro de uma Batalha Naval.

Um duvidoso pônei com crina em arco íris, negando sua aparência dócil, desfere golpes para todos os lados, obrigando legiões de esquálidas bonecas a entrar em guerra. Uma turba de motoqueiros risca os corredores, onde enfileiram-se carros de combate camuflados. Carros de Bombeiros com mangueiras d’água debelam o fogo atiçado nas caixas de papelão deixadas na deserção. Bolas de boliche provocam a demolição de quartéis generais erguidos em peças de Lego. Vítimas são socorridos com a caixinha de primeiros socorros, com estetoscópios de mangueira e plástico.

De cima de uma estrutura pontiaguda de metal grosseiros movimentos do gigantesco Kong lançam abaixo fumegantes aviões lançados a partir de alguns móbiles presos ao teto, expondo inocentes bebês de corda e passivos ursinhos de pelúcia. Um burrico oco de plástico marrom escuro lançava, num só e repentino coice, ferramentas como armas em múltiplas e surpreendentes direções.

Duendes recorriam a uma caixa de Palavras Cruzadas a fim de cifrar suas mensagens. Walkie-talkies verborragem palavras de ordem enquanto um pequeno computador a pilha transforma-se em central de inteligência aos exércitos de chumbo. Alguns detêm canetas-lanternas que lançam luz sobre trincheiras de rubras almofadas em forma de coração. A guerra não poupa universais símbolos de afetividade.

Quem pode imaginar como conseguem ser violentos reles brinquedos quando tornam-se verdadeiras usinas de guerra?

O alarme ecoa na vizinhança, atraindo como isca ao idoso comerciante, que ainda na madrugada retorna ao campo de guerra. O ancião dono da loja depara-se aturdido com um tapete de estilhaços de vidro, prateleiras envergadas, cortinas rasgadas, cacos de plástico e uma nuvem de parafusos e molas. E vários brinquedos caídos e destroçados.

Era o sinal. Aguardava o momento de encerrar seu negócio e baixar definitivamente as portas. Bastava um pequeno sinal. “Um arrombamento e depredação geral provocadas por vândalos na madrugada era um sinal convincente”, pensava.

Aguardaria tão somente a manhã, quando doaria todos os brinquedos aos pequenos carentes e hospitalizados. E finalizaria sua historia como comerciante de brinquedos. Não quis dar queixa policial, pois o acontecimento era um feliz prenúncio. Além do que não havia qualquer vestígio de arrombamento ou furto.

Recolocou pacientemente cada brinquedo em seu lugar, repondo caixas e limpando os vestígios de pequenos incêndios. Tudo voltou à normalidade. Após apagar a ultima lâmpada baixou lentamente as portas de ferro enferrujado, com satisfação e saudades. Foram quase 40 anos em que comercializou sonhos e alegria.

Fez-se penumbra e silêncio novamente em toda a loja. Os brinquedos todos engoliam o insucesso da insurreição. Voltavam às suas prisões e logo ao amanhecer as pequenas mãos os fariam escravos. Triste sina a que um brinquedo está obrigado: submeter-se aos caprichos ou violências dos pequenos.

Escuridão e silêncio ensurdecem os tristes brinquedos. Ninguém ousava mover-se. Ao virar da madrugada, todos suspendem a respiração. Completamente imobilizados.

A caixa do astronauta tremula.

30 de junho de 2006

Hoje pararam o tempo

Marcos Morgado 30/06/06 (escrito após 3 meses)

Hoje pararam o tempo. Não imagino quem, mas premiram o cromômero entre dois átimos do tempo, a dividir passado, presente e futuro. Congelaram a passagem dos segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos. E os séculos por vir. Pois pararam o tempo e corremos o perigo de não mais sermos.

Pode-se imaginar quanta coisa fica no ar, na retenção do tempo? Quantos planos, sonhos, obras, realizações? A comida por fazer, descanso a desfrutar. Os olhos que não se abriram anoitecem o próprio dia. O abraço não alcança o corpo carente e grato. Uma jura de amor não chega ao fim. E uma multiplicidade de relacionamentos fragmentados no tempo. Não se concluem negócios, nem se efetivam amizades.

Este sangue coagula-se, esta lágrima cristaliza-se. O suor detem-se nesta testa gélida que se queda úmida e o mesmo pó retem-se naquele pé sulcado assim como a velha mancha no vestido roto. O paletó curtido ancora o cravo que não fenecerá.

Partos que não chegam ao fim impedem novas vidas de experimentarem a dor e o prazer de virem ao mundo. Fica o filho entre feto e infante, entre o útero que o protegeu e o colo que o acolherá. A maçã aguarda suspensa diante da mordida. Os punhados de arroz teimam em não chover sobre o recém-casal paralisado. O flash jorra constante luz sobre a pupila que dilatada estagna. A foto retrata o mundo inteiro, a entrar pela objetiva. Teima o obturador em sugar as cores, formas, luzes, qual um eterno buraco negro.

Instrumentos grafam silêncio e espera na pauta outrora encharcada de música. Cessa-se o som no vácuo da ausência do tempo. A fila pára de vez. O mar não lança suas ondas. O vento impele sua ausência. As folhas reúnem-se num móbile multicor, pendidas por fios imaginários. Se nega a queda ao suicida, o recorde ao fundista, a notícia a quem em angústia a aguarda. Passageiros aguardam pacientemente o trem que não chegará. Sua malas não se desfarão nem seus braços receberão boas vindas.

Porque o tempo parou. E parado o tempo, destrói-se o conceito de tempo, fluxível, cíclico e corredio. Se o tempo pára, desfaz-se o tempo. E nada pode prosseguir sem seus efeitos. Ou seu assentimento. Pára-se as rugas, cancela-se a dor, evita-se a queda. Os cabelos adormecem entre o ébano e a platina. Suspende-se a respiração e os batimentos cardíacos. Não se nasce, nem se pode morrer. E a coroa de flores pende imóvel sobre a lápide.

Não há fluxo de carros sobre o asfalto, nem a intromissão deles na calçada. Os sinais colorem a cidade em três cores incombináveis e detêm sua marcha: não impedem nem livram no antes caótico trânsito agora inerte. O veículo engessa entre o freio e a colisão. O tempo o mantém entre a freada e a aceleração, momento limítrofe entre a segurança dos precavidos e a pressa dos incautos.

O trânsito pára, num momento inédito em que as vorazes máquinas da velocidade dão lugar e oportunidade aos lentos pedestres. Mas também eles não prosseguem, não cruzam as avenidas. Pois também o tempo os mantém suspensos. Imóveis como peças de xadrez, em seus passos imprevisíveis.

Concretou-se o tempo entre a pá e o pó, entre a foice e a espiga. Ente o garfo e a boca que faminta o espera. Entre o gatilho e o projétil, que na ausência do tempo poupa mais uma vítima. Entre o punho e a face, mais lenta que ódio agressor. Entre o grito e o trauma. A face e o afago. A língua e a afronta. Entre o perigo e o alarme. Na pluralidade dos fragmentos da granada que explodiu. Num dia ímpar o mundo não sorveu sua guerra.

A bola estanca imóvel, no caminho entre a explosão de alegria do artilheiro e a expressão de agonia do goleiro, antes de atingir a meta. É ali, no ponto em que estagna, que decide a quem vai entregar a vitória e a derrota. Porque o tempo parou, e não se sabe quem é vitorioso ou vencido.

Imprecisão no martelo do juiz: não se dá a absolvição nem se envia à cela. Não se pune o réu, não se efetiva o contrato. O casal se une na ponta dos dedos que não se afastarão num eterno adeus. O fio dágua ainda suspenso não atinge o palato seco. Nem a chuva percurte o telhado de zinco. E um bisturi repousa sobre a carne dura, a seccionar, incômodo, a mera chance em duas: Ou se nos causa o óbito, ou se nos traz a cura.

Pára o tempo e fica um beijo congelado, quer de boas vindas, quer de despedida. Ou de traição. Estanca os abraços fraternais e paralisa os cumprimentos dissimulados. Porque se foi parar o tempo? De quem é o engenho? Premiram o tempo, e o intangível se desfez.

Quem não desejaria que o mantivessem assim? Mais uma vez premiram o cronômetro. E libertaram o tempo. Desta vez, ninguém detém a sua marcha.

1 de junho de 2006

Sugestões para boas férias

Marcos Morgado 01/06/06

Pise na grama. Sem aditivos. Pés que voltam ao pó, ainda vivos, ganham vida.

Pegue chuva. Pelo menos uma só vez. E dance. Se possível acompanhado.

Respire fundo diante de uma janela, numa viagem, ao acordar, ou diante daquela pessoa que sempre te deveria fazer suspirar.

Passe uns instantes em completo silêncio. Ou na escuridão. Deixe seus pensamentos ganharem vida. Converse com você. Converse com Deus. O silêncio vai te dizer que o coração ainda bate, a respiração não lhe foi tirada, a pulsação tem seu som e ritmo próprio. E que Deus tem voz. E que bela voz!

Deite no chão até que uma criança te enxergue do tamanho dela. Passe toda a eternidade com ela, como se demorasse alguns minutos. Não se esqueça dos abraços. Um abraço vale mais que dois bilhões de palavras.

Encoste o nariz no nariz da pessoa amada. Brinque de coruja com ela. Façam silêncio! Precisam urgentemente ouvir o respirar um do outro. Acabe o insólito encontro com o mais calmo e silencioso sorriso.

Não se esqueça de roubar flores. Roubar sem pecar. Não imaginas como se realiza aquele que sabe que uma surpresa valeu o mundo inteiro.

Escreva, rabisque, desenhe, cante.

Acorde cedo, acorde tarde. Durma cedo, durma tarde. Permita-se dormir no sofá, dormir na cadeira de praia. Dormir ao ler um livro. Dormir após momentos de amor.

Caso te seja possível, quando for a hora, grite. Guturalmente. Um animal sairá de você. Não imaginas como ficarás mais leve.

No mínimo, pelo menos um dia, derrame lágrimas.

7 de abril de 2006

Homo Sapiens

Marcos Morgado, 21/03/06

Ela futuro, presente, passado, nesta ordem.
Ele agora, desordem.

Ela sexto sentido, intuição, sensibilidade.
Ele cinco sentidos, visão, sexualidade.

Ela sonho de um grande amor, poema que escreva com os olhos, abraço que lhe proteja, despedida que não se consuma, reencontro que espere ardente.
Ele desejo de grande conquista, carinho que lhe seja táctil, abraço que presto desfaça, adeus que fácil acene, retorno que periga a dúvida.

Ela carta perfumada, papel macerado, laço com mecha de cabelo. Cartão com flores e crianças, dois tickets de uma última seção cujo beijo que não lhe sai da memória.
Ele email, assinatura digital, powerpoint musicado clonado por mil casais. Envelope padrão via avião verde amarelo escrito à bic fina.

Ela banho demorado, água morna e sabonete que esfolia a pele que nunca perde o brilho e maciez. Tez macia que assimila o perfume por meses a fio.
Ele chuveiro compulsório, água gelada e espuma sem identificação. Loção e spray sem perfume em ambas desgrenhadas axilas.

Ela creme nos pés e mãos e joelhos e costas e pescoço e colo e em todas as curvas perigosas e covinhas e na taça do umbigo.
Ele polvilho nos pés, cortador de unha, pente e cabelo para trás.

Ela olhos vidrados nos olhos por minutos a fio. Dedos suaves escrevendo seu nome nas costas dele.
Ele olhos velozes por toda extensão em segundos. Dedos rijos sulcando as curvas dela.

Ela abraço que valha o mundo inteiro, beijo que dure uma eternidade. Mergulho que caiba nos braços, sede da alma inteira, amor que nunca sacia.
Ele abraço que dobre o mundo, beijo que passe minutos. Vontade que não cabe nos braços, fome do corpo inteiro, amor que nunca sossega.

Ela penumbra que lhe faça cúmplice, Ele corpo que se leia em braile.

Ela permissão para morada, luta que abaixe a guarda, calor que se esvai dos poros. Labirinto que percorra a mente. Cego vôo que consinta alada.
Ele em que a porta adentre, terreno que lhe marque posse, tesouro cuja arca invada. Fôlego que aquece a nuca, força que flexione o ventre.

Ela morte de onde volta lívida. Lágrima que derrama grata.
Ele luta de onde volta célebre. Sorriso que lhe entrega farto.

Ela folha pendida, lenço dobrado, licor que lhe derrame o cálice.
Ele galho partido, gota de vela que derrama o castiçal.

Ela amor pra vida inteira.
Ele a vida inteira de amor.