4 de março de 2006

Sem destino

Marcos Morgado 25/10/05

Não importa o que acontecer, eles jamais ficarão juntos. Queiramos ou não, definitivamente eles nunca irão se encontrar. Kátia e Flávio traçarão suas vidas inteiras numa eterna paralela. Desejaríamos intervir em seus destinos, mas nada o que fizermos poderá mudar isso. Contrário à nossa vontade eles não viverão felizes para sempre.


Vivem no mesmo bairro, mas seus apartamentos não miram um ao outro. Ela passeia com o cachorro na pista onde ele corre contra a brisa da noite. Mas sempre tomarão sentidos opostos. Seus olhos já foram atraídos para ela, mas o sinal do cronômetro destruiu a última oportunidade.

Ele, rumo ao trabalho, pegou o ônibus que Kátia por uns passos deixou de pegar. Ela já entrou na empresa dele, mas um outro é que a atendeu. Cruzaram-se no sinal, mas incidente nenhum os fez interceptar um ao outro. Flávio já ligou por engano para ela, que desligou ao menor sinal de equívoco. Lançou fora uma das poucas e maiores oportunidades para se conhecerem, mas isso jamais ocorrerá.

Ele escolhia produtos na prateleira do mesmo supermercado que ela, mas uma fila longa demais os distanciou. No estacionamento guardavam as compras que não chegariam a consumir juntos. Marcaram consultas com o mesmo médico, em dias em que não se encontrariam. Já estiveram muito próximos. Um guardou por dias a lembrança o perfume do outro. Não se esbarraram, jamais se pediram perdão. Já pisaram inúmeras vezes a mesma calçada. Jamais ao mesmo tempo. Viveram incomunicáveis.

Ela estuda a algumas salas da sala dele, na faculdade onde se formarão, em tempos distintos, pois Kátia se distanciará de Flávio por conta da matrícula trancada, por razões da recuperação prolongada da nova cirurgia de seu pai. No baile de um o outro não estará. Nem na cantina, nem no bebedouro, nem no café. Nem nas fotos de cada um.

Kátia pratica esportes no clube de onde avista Flávio a suar na quadra de tênis, enquanto despede-se ao telefone de quem a distancia ainda mais dele. É que Flávio jamais ligará pra ela nem receberá suas chamadas. Jamais trocarão os números, nem torpedos, nem confidências. Nem levarão a eternidade esperando o outro desligar primeiro. Jamais se atenderão. Não reconhecerão suas vozes. Em momento algum se ligarão só pra dizer “te amo”.

Cruzaram, em direção oposta, a escada rolante que a levaria a uma loja de perfumes que ele não a presentearia, e ele à escolha de um disco que em tempo algum ouvirão juntos. É triste dizer, mas não colecionarão qualquer memória em comum. Nunca se esquecerão de suas datas, seus gostos, suas predileções nem de seus apelidos de infância.

Por apenas um momento suas paralelas se aproximaram, sem se tocar, quando da fila de um banco, onde Flávio exerceu sua gentileza, a franquear lugar a Kátia, cuja gratidão não foi suficiente para guardar o seu nome. Foi a única vez que lembrou sua face, a usá-lo como exemplo de cavalheirismo à suas amigas. Foi também seu único encontro, se é que podemos considerá-lo como tal.

Ela acertou o final do filme que viu na primeira seção. Ele o viu na última, onde com ela não dividiria pipocas e emoções. E os beijos que não deram durante os créditos finais. Ela foi à pista de patins, ele ao restaurante. Foi por isso que ele não testemunhou as quedas dela, nem ela com ele dividiu o vinho no gelo. Não escolherão juntos prato algum. Nem trocarão músicas ou intimidades no guardanapo. Não compartilharão a mesma dança, nem o eloqüente silêncio no carro nem o calor do tapete da sala. Nem os primeiros raios da manhã seguinte. Ou os sorrisos e frutas do café da manhã.

Não escolheram as alianças que usariam por anos seguintes. Ele não se emocionou com o vestido de noiva dela. Não discordaram da cor do sofá nem estouraram as bolhas do plástico de que desnudariam a geladeira. Não tiveram nada em comum, nem a fome na noite, nem o medo do futuro, ou o lençol que não acolheu a ambos. Nem as manchas de tinta da cerca do quintal. Um não levará nada com as iniciais do outro.

Kátia não receberá o sobrenome que Flávio não colocará após os nomes que se escolherão pros filhos dela. A filha de Flávio não terá os longos cabelos negros de Kátia nem o filho dela herdará os cachos castanhos dele. Porque ele não apertará as mãos de Kátia, única ternura e força a sentir durante os sofrimentos do parto.

Se lhe é impedido de comemorar com os amigos os filhos que ela não lhe dará. Ou rever juntos os presentes que as visitas deixarão. Nenhuma fita, vídeo ou foto contém a ambos. Nenhum amigo os recebeu. Em nenhum momento assinaram algo em comum.

Assim traçam seus rumos eqüidistantes, e nada podem fazer para solucionar isso, pois jamais se encontrarão. Ela desconhecerá que sua paixão aumentaria toda vez que ele apertasse os olhos ao se deliciar com alguma coisa gostosa. Ele nem desconfia a possibilidade de ser o homem mais feliz do mundo todas as vezes que ouvisse aquela doce e inesquecível voz ao acordar. Nem a graça da risadinha dela.

Lamentavelmente Kátia e Flávio não escreverão história, ninguém os citará em versos. Não haverá música que os lembre. Nem caso que venha à memória. Não suscitarão ciúmes, nem saudades, nem romances, nem paixões.

Um viverá sem o outro. Pois esta é a história de duas pessoas que jamais se saberão existir. E nada o que fizermos poderá mudar isso.

1 Comments:

At quarta-feira, novembro 02, 2011 10:56:00 PM, Anonymous Larissa said...

Muito bom, tio! Gostei mesmo.

 

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