4 de março de 2006

O texto

Marcos Morgado 25/10/05

Preciso escrever. Menos por inspiração que por dever, faz-se necessário urgentemente escrever.

Posso ficar sem respirar, sem comer. Sem me lançar às indispensáveis expressões de afetividade, mas não sem escrever.

É imperioso e vital. Urgente.

Com a inspiração me agraciando visita, corro a buscar alguma coisa que me socorra na escrita.


Acho um lápis velho e mordido hibernando em uma gaveta da cômoda numa posição confortável, de onde o recolho.

Não sei se por retaliação à privação do descanso, ou por simples capricho, o lápis não risca o papel. Inclino-o com destreza. Resulta o mesmo. Uma pequena pressão a mais e lhe fraturo a grafite. Extraio, decidido, algumas farpas polpudas com um estilete, expondo nova ponta. Volto a meu ofício. Aninho o lápis com perícia e cautela. Antes da segunda sílaba, nova fratura.

Suspeitei abusar de minha força. Manejo o lápis com mais graça e leveza, mas ele não demonstra a menor gratidão. Retribui-me dividindo-se ao meio, desnudando o núcleo. Agora o lápis são três. Duas canas de madeira e um multifacetado núcleo de grafite, a explodir em minúsculos grânulos, rebelde, à menor tentativa de usá-lo.

Sem lápis, sem texto. Mas não diante de minha determinação. Parto para algo mais moderno. Reviro os locais vários onde uma caneta não deveria estar. Porque caneta é pra se ter ao lado, inseparável. É pra se ter dormindo ou banhando-se. Nunca se sabe quando uma idéia vem à vida. Não se sabe a hora do parto das nossas mais repentinas inspirações. Professo que caneta deve estar ao lado, segredando nossos mais íntimos pensamentos. Deve se tornar amiga. Ser braço direito. Ou esquerdo, depende do escritor.

Encontro uma distante de mim e de meus pensamentos em profusão. Tomo-a confiante. Corro afobado a ameaçar riscar o papel. Ela emudece. Não risca, não traça, nem fala. Resiste à torturante temperatura de um fósforo de que faço uso, na possibilidade de estar ressecada. Sacudo-a com veemência, tamborilo-a com ritmo sobre o papel. É em vão.

Quem imagina a que nível de teimosia pode chegar uma caneta? Estou certo que assim faz, a fim de levar-nos à loucura, para que ela, e não nós, tenha total controle sobre nossas ações. Disseco-a como a um batráquio, mas seus músculos estão retesos e minha incursão é vã. Não há vida nem esperança numa caneta que se negou a ser usada.

Desprezo-a em outro canto esquecido, também onde não deveria estar, e caço com diligência um antepassado seu, mais nobre e exigente. É uma caneta tinteiro. Meu trabalho reveste-se de pompa, ao premir no papel a ponta banhada a ouro, embebida da tinta que suguei do recipiente sextavado de vidro polido esverdeado. É tão requintado que pesquiso as preciosidades da língua, a fim de fazer jus a tão refinado aparato.

Porém minha polidez se esvai com a tinta que vaza sem a menor compostura, borrando o pouco que já redigi. Minha honra ultrajada palpita nas veias do pescoço. Traço breves planos de vingança. A nobre caneta e seu tinteiro são rebaixadas às profundezas de um latão de lixo, onde estão condenadas suas companheiras de motim.

Já com a mente e pensamentos em alvoroço regrido a uma pueril pena de escrever, que subtraio à força de uma inocente vítima que me espreitava da janela. Antes da desgovernada fuga, numa pontada de dor, a desventurada pomba me concede o instrumento para meus apontamentos.

Molhando a pena no restante de tinta que vasou da caneta desalmada, improviso uns primeiros riscos. A pena, como que com vida própria, se desvencilha de meus cuidados e flutua em direção à janela. Empreendo um bote em direção à fugitiva, que mais prudente que eu, alça vôo em direção à liberdade, manchando o céu azul com riscos esbranquiçados que deveria ter escrito em meu papel.

Nunca imaginei que escrever algo tornar-se-ia uma questão de honra. Antes por puro prazer e inspiração, agora por dívida e lavar de alma.

Retrocedi tanto no afã de minha escrita que imagino um momento chegar aos arcaicos traços de um carvão ou pedra riscando a rocha nas paredes de uma caverna. Julgo ter sido mais feliz o rude escritor na alvorada da vida humana, com seus mais toscos utensílios do que eu, desenganado em tentativas de resguardar as minhas idéias fugidias.

Há dois saltos na história da escrita: Os rabiscos das cavernas e a tipografia de Gutemberg. Lançarei mão dos recursos de um, antes de só me restar os recursos de outro.

Encontro, obsoleta, uma máquina de escrever encravada entre objetos igualmente esquecidos, qual mamute entre incontáveis fósseis. Sopro a poeira de sobre o alfabeto escondido entre mecanismos que não parecem cooperar. Repouso nervosamente as polpas de meus dedos sobre os caracteres que publicarão minhas idéias. Respiro fundo. Tento com sofreguidão recobrar as poucas frases que me restaram da já falida memória.

Já suspeitava. Peça por peça, a máquina se desfaz, numa avalanche de minúcias microscópicas. Salta um "d" depois do "p", um "r" combina a fuga com a exclamação, e pouco a pouco todos os suspeitos caracteres zombam de mim com suas ausências planejadas. Independentes, as molas explodem em várias direções, qual uma guerra onde o único sobrevivente sou eu. A máquina virou um montículo de ferragens e plástico, num monumento à censura de minha expressão. Tudo se reagrupou numa imensa e silenciosa escultura, no meio de minha sala conivente.

Há momentos na vida de um homem que delira em ser escritor, em que a saída é lançar mão de um pouco de tecnologia. O carvão na mão do hominídeo não foi um dia tecnológico? Dou vida ao computador, que me saúda com suas cores e sons, a esconder limitações que amargaria descobrir. Ele fala, lê, calcula e controla. Mas para meu crescente desespero não escreve. As teclas acendem luzes, apitam sirenes, comandam periféricos e rabiscam em segundos os traços enigmáticos de Monalisa. Mas não compõem uma palavra. A menor sequer. Que fosse um monossílabo, uma interjeição. Talvez um sim ou não. Duas letras, lado a lado bastavam. Nada. Recusa-se.

Cansei. Minha revolta avoluma-se num segundo e explode num ato desmedido e violento. Arremesso-me contra o aparato e fatio sua caixa, num espetáculo pirotécnico de luzes e ruídos, até fazer-se total silêncio, com todos os átomos e bits espalhados no tapete.

Com a explosão, a energia elétrica também me abandona. Silêncio e negrume total. Ouço minha respiração voltando ao limite tolerável. Volto a ser um homem com algum controle sobre as emoções. Dou-me por vencido.

Meus olhos se acostumam à escuridão. Aos poucos vejo os contornos de minha estante. Repousa, sobre a primeira prateleira algo de um branco fosco. Tateio com cautela. Era um giz. Minha inspiração retorna.