O homem sem nome
Havia um homem sem nome. Ou com um nome impronunciável. Um nome que mais era um estorvo. Era um crime. Uma dura paga pelos poucos pecados de um homem. Uma sina cruel. Temo até em dizer o nome deste homem sem nome.
É que dizem que é amaldiçoado, que tem feitiço, pois seu dono não o pronuncia. Nem o relembra. Mexericam que dá azar, que não casou, não arruma emprego, está sempre à margem das amizades, longe das ruas, não abre crédito, nem compra a prazo. É por causa do nome. Franze a testa, com pesar, toda vez que o soletra. É um embaraço de oito letras. Astolrfo.
Não importa sobrenome, nem descendência. Ele já era Astolrfo, e isso é que importa. Ou incomoda. Um Astolrfo que já foi menino. Um menino sem nome. Davam-lhe apelidos, chamavam-no como quem chama um baleiro de trem. Assobios, palmas, estalar de dedos, “ô, você” ou qualquer coisa que o chamasse atenção. Menos seu nome. Seu verdadeiro e pesaroso nome. Nome daquele menino sem nome.
Tinha que um cérebro e um coração receber uma etiqueta com Astolrfo?
Já tentou namorada. Destas que juram paixão, que dizem amar além do mundo e da vida, que fazem prova de amor, que não largam as mãos. Até conhecer o nome. Não se pode amar um homem sem nome. Até conhecer o nome. E finda o amor. E foge a paixão. Se quebra todas as juras ditas. Se despede com lágrimas de remorso ou de quem se julga traída. Fosse outra mulher seria suportável. Por um nome, não. Astolrfo. Pode-se amar alguém assim? Como atrelar as mais nobres e emotivas frases de amor a algo tão desmedido e insuportável assim?
Partiu. Deixou o homem. Levou os discos, levou os livros, levou as fotos, o amor e o coração. Deixou o nome. Porque aquele nome era indigno de ser levado. De ser lembrado. De ser amado. Quem ama, ama o nome. Não se pode constituir família ou construir um lar sob um nome desses. Daí por diante todos seus sucessivos insucessos afetivos eram debitados ao seu nome.
Astolrfo não mais amou, não deu seu ombro a mais ninguém, nem suas mãos acalentou um rosto. Não noivou. Seu nome não era de um nubente. Não contraiu núpcias. Seu nome não mais estaria num bilhete nem marcado sobre outro nome numa árvore. Nem em placas de madeira, par com outro, sobre a lareira. Os meninos não suportariam ter um pai assim. Amoroso, protetor. Mas sem nome.
O endereço de seu mail era uma fórmula química ou matemática, com iniciais e números a substituir uma pessoa. Uma pessoa sem nome. Não se pode botar uma arroba após aquilo que não suportariam escrever. Ficam as letras e os números. E sua honra intacta. E as poucas mensagens que recebe. Cartas, nunca as leu. Não recebe malas diretas, nem propostas de cartões, nem assinatura de jornal.
No batismo, foi uma desgraça. Sem parentes, sem padrinhos, pois seria melhor ser pagão que entregar ao pobre do menino nome daquele. O padre negou-se. O menino recebeu o nome mais que por orgulho ferido dos pais do que por gosto. Pois era Astolrfo, e isso é que incomoda.
Chamadas no colégio evitavam seu número. Por precaução estava sempre presente. Recebeu dispensa militar pois ninguém segue carreira com ficha manchada. Seria batizado com sobrenome, mas aquilo estaria sempre lá, a manchar a ficha. É a ficha que importa. A nação não teria um soldado Astolrfo. Seria um soldado sem nome. Sem honra. Sem condecorações ou medalhas. Quem jamais ousaria gravar na medalha um nome daqueles? Sobrou. No exército, no amor e na vida.
E no trabalho. Passava nos testes com louvor. Impressionava nas entrevistas. Era garboso, o rapaz. Desses meninos bonitos. Meninos sem nome. Que vão-se bem até lhe pedirem a identidade. Assustam-se. Revoltam-se. E lhe devolvem o documento. Junto com a chance e a oportunidade. Pois nenhuma empresa tem em seus quadros um homem assim. Um homem que se chama Astolrfo. Um homem sem nome. Sem carreira nem futuro. Não pode haver futuro para um homem chamado Astolrfo.
No parto, na infância, na vida, no amor e na guerra não podia chamar-se Astolrfo. Seria feliz com outro nome. Realizado. Apaixonado. Empregado ou crivado de medalhas. O mais feliz dos homens. Com um nome.
Porque não um Carlos, um Antonio? Um simples José. Tinha de ser Astolrfo?
Um dia o homem sem nome não mais era. Esculpido no epitáfio apenas uma frase. E as datas, de quando recebeu seu nome e de quando o perdeu. Nenhum nome. Pois ali jazia apenas um homem. Um homem sem nome.
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