5 de março de 2006

Sim ou não ou sim e não?

Marcos Morgado 02/03/06

Palavras traduzem idéias. Há idéias com as quais desposamos. Há outras que deploramos. Portanto há palavras que gostaríamos ver extintas e outras que preservaríamos. Lutamos por idéias. O que quer dizer que lutamos por palavras.

Já há muito desejavam decidir o destino de algumas idéias. Ou de algumas palavras. Há os que encontravam-se fartos da positividade passiva da palavra “sim”. Outros que sonhavam extinguir a intransigência e inflexibilidade da palavra “não”.

Propuseram um concílio. Filólogos, exegetas, etimólogos, poetas, catedráticos, hermeneutas, mestres, ministros religiosos, e mesmo políticos reuniram-se no 1º Simpósio de Extinção de Verbetes onde esperavam defender ou abolir a extinção de duas palavras que imaginavam obstruir a comunicação entre os homens e prejudicar a paz mundial.

Como conciliar usos tão idiossincráticos das duas palavras em expressões tão contraditórias? Como pode o “pois sim” indicar negativa e o “pois não” representar positividade? Era tempo de acabar com tanta ambigüidade.

Uns, com apaixonada locução apoiaram irrestritamente a dissolução do pesaroso e impassivo vocábulo “não”. Provavam ser ele a origem das guerras e pesares da humanidade. Através dele uniões eram desfeitas, matrimônios e enlaces afetivos jamais realizavam-se, patrões evitavam empregados e seus direitos, nações inteiras negavam a seus lideres a execução de suas leis.

Esta tirânica e autoritária palavra deveria sem demora ser suprimida dos dicionários, livros e leis, cartas, receitas e bulas de remédios, e por fim do dia a dia e da vida de todos os indivíduos. As almas dos homens sorveriam enfim a liberdade. Ninguém coibiria seu próximo com tão férrea negação. Estava proposto o fim do não.

Enfurecidos discursos foram pronunciados com o máximo de cuidado, a fim de evitar que dissessem “não”, pondo em risco a argumentação. Sugeriam que se usassem outros advérbios.

Houve uma explosão de recusas. Grupos argumentavam que sem “não” jamais poderíamos cumprir a legis áurea. Como reescrever os Dez Mandamentos, principiados por tão indispensável palavra? A Constituição e as Leis Nacionais teriam de ser adaptadas. Toda legislação perderia sua força. Ainda assim ficaram sem consenso.

A turba foi maior quando postularam a respeito da extinção do “sim”. Com amargos protestos acusaram o positivo monossílabo, condenando-o como vocábulo permissivo e libertário. O afrouxamento materno usufrui da flacidez da palavra a estender limites já tão longos a uma geração desacostumada com proibições e negativas.

Em contrapartida grupos afeitos ao “sim” questionaram a possibilidade do matrimônio na ausência de palavra tão necessária. Como efetivar o enlace sem o definitivo e confirmatório “sim”? A extinção do “sim” poderia promover a extinção da raça humana. Os interrogatórios não teriam seu apoio. Como ficariam os questionários sem a primeira lacuna? Como faríamos para demonstrar consentimento ou permissão?

O pressentido desentendimento aflorou em demonstrações emocionadas a favor de um ou outro monossílabo. Faixas eram brandidas com a frase “Não nunca mais”. Cartazes foram espalhados com o slogan “Diga sim ao não”.

Punhos cerrados esmurravam o ar acompanhados com o coro ritmado da palavra “não”. Os que emitiam um longo e uníssono “sim” levantavam seus polegares aprovadores. Nunca ambas as palavras foram tão pronunciadas. Talvez aí esteja uma das indiscutíveis demonstrações da utilidade de ambas.

Os que presidiam engendraram uma votação, não posta a cabo pela necessidade óbvia de ambas divergentes palavras. Como solucionar o impasse? Quem vencerá a peleja? Morte ao “sim” ou fim do “não”?

Exaustos de utilizarem as mais diversas e profusas palavras em argumento e defesa de apenas duas, os filólogos, exegetas, etimólogos, poetas, catedráticos, hermeneutas, mestres, ministros religiosos, e mesmo políticos, entre ofensas e desagravos chegaram a inquestionável conclusão de que seria impossível viver sem os incômodos, porém necessários monossílabos.

Os punhos negativos transformaram-se em apertos de mão e os polegares positivos em amistosos abraços. Ambas as palavras promoveram a harmonia outrora inexistente e fizeram dos dois grupos divergentes apenas um, que desde então tem lutado pela continuação de duas palavras, que imaginavam obstruir a comunicação entre os homens e prejudicar a paz mundial.

4 de março de 2006

Sem palavras

Marcos Morgado 18/01/06

Há muito, nos comunicávamos. Estimo que há um ou dois séculos. Não estou bem certo, mas creio que éramos melhores que somos. De várias formas, nos comunicávamos.

Sei que é uma heresia (que não saibam que assim penso) ou mesmo um perigo contra a humanidade, mas tenho firme convicção: deveríamos voltar a esta forma atrasada de ser, este retrocesso na raça, e de alguma forma nos comunicarmos. Estou certo que éramos mais completos, mais edificados e ouso dizer, mais felizes.

Mas não mais o fazemos. Somos um emaranhado de células sem sinapses. Correntes sem elos. Pares sem palavras. Quer por som, letras ou sinais, nunca mais nos comunicamos.

Não sei se deliro, mas dia desses vi no jornal uma palavra. Uma única e disfarçada palavra. Sei que há muito não usamos palavras nos jornais. São só figuras, montagens e cores. Tão somente. Isto basta para suscitar em nós graça e prazer, e o suficiente a bolir em nossa mente e sensações. Mas vi uma palavra, solteira e ameaçadora. Juro que vi.

Não sei quando, mas as palavras, sei bem, foram abolidas de nossos jornais e revistas, telas e panfletos, cartões e qualquer mídia ou suporte. Há muito que nossas comunicações não se baseiam nessas pobres junções de caracteres e sinais, traços de uma humanidade retrógrada, que teimava em manter contato entre si. Faziam-nos perder precioso tempo em comunicação. Era um momento em que os homens necessitavam expor suas idéias e recebê-las em retorno, pobre humanidade adolescente, carente de expansão e desenvolvimento.

Por isso aboliram o contato humano. Não se escrevia mais. Nem se falava. Ou se imprimiam obsoletas palavras. Não refletiam pensamentos nem informavam o que quer que fosse. Ninguém tinha o direito de transpor sua mente à outra mente. Seus desejos e ideais eram somente seus. Aos poucos afastadas, por fim coibidas, as palavras e conversações foram estimadas por ofensoras e progressivamente proibidas.

Sem mensagens ou telefonemas, cartazes ou conversações. Símbolos e gestos, músicas ou periódicos. Assim fez-se surgir uma nova humanidade. Sem falas ou expressões.

Hoje divorciamo-nos de todo atraso e empecilho que é a comunicação. Pensamos por si só. Sentimo-nos. Retemos nossos pensamentos e sensações exclusivamente conosco. Assim nos formaram, assim procedemos. Aprendi que o homem é uma ilha, um fóssil, e imenso monólito mudo. Uma caixa absurda de conteúdo lacrado, sigiloso. Hermético.

Mas crescentemente sou tomado por outros princípios. Outros propósitos. Resisto a pensar que precisamos todos nos comunicar. De minha parte empreendo esforços para mais uma vez comunicarmo-nos. Munido de algumas páginas fracionadas, forço o reconhecimento de algum sentido naqueles traços impressos. Tempos atrás tinha visto coisas assim, numa parte escondida de minha casa. Volto a reconhecer umas letras e sinais, acentos e grafismos. É que recebi de herança um porão repleto de palavras. Ninguém sabe, mas ousei guardá-las a uma oportunidade. Quem sabe, pensava eu, não voltamos a usá-las?

É um copioso arsenal de palavras. Jornais baios, revistas descoloradas, cédulas inválidas, letras de música, bulas de remédios. São fluxos de palavras a preencher a mesa, a tarde e minha mente em polvorosa. Mergulho, fôlego em suspense, em mares de palavras. Há palavras para o mundo inteiro. E nós sem usá-las.

Pesquiso-as, amanso-as, reagrupo-as, decifro-as. E passo a usá-las. Tenho a inabalável certeza que seríamos melhores com elas. Irmano letras antes ímpares. Soldo uma a outra e ouso formar palavras, conceitos, idéias, comunicação. Agora são frases inteiras. Explodo em mensagens a atingir paredes, a alçar chaminés, a escorrer pelo telhado, a tomar o gramado em direção às casas mudas e ruas silenciosas.

As pessoas não sabem o bem que fazem as palavras. O que pode duas delas juntas.

Temo descobrirem desejar comunicar-me. E bem que desejo. Ser letreiro e farol. Enviar minhas emoções retidas em frases inteiras a subir os montes, atravessar as cidades, tomar o continente e riscar os mares onde outras pessoas possam me sentir, me conhecer, me receber e retribuir.

Sonho enviar cartas, compor canções, imprimir uma floresta de palavras. Abolir a mudez da humanidade. Confrontar o silêncio de nossa civilização. Regredir ao tempo em que comunicávamos. Estou certo que éramos, ouso dizer, mais felizes. E ainda o seremos.

Minhas palavras, rebeldes agentes da comunicação, entram em lares, tomam repartições, assaltam os mais altos andares do governo vigente. Fui longe demais. Não perdoarão minha transgressão. Minhas palavras causam transtorno nos sinais, assombro nas casas e perplexidade na humanidade. Devo ser caçado. Emudecido. Finalizado.

A luz e o som da sirene em minha calçada informam que minhas palavras alçaram os limites estabelecidos. E que a humanidade não está pronta para o mais tênue e superficial relacionamento. Sou detido. Algemado. Circunscrito. Só não recebo nem mandato escrito nem voz de prisão, pois os truculentos homens cumprem as leis, e ambos, voz e mandato encontram-se sob proibição. Mas não resta a dúvida que fui longe demais.

Novamente incomunicável, conservam-me recluso. Sem letras nas roupas, nem números na cela, sou retido com vários transgressores mudos. Ou silenciados. Passo dias sem ouvir palavra. Sem ler que fosse riscos de dias nas paredes. Não há ordens, nem lamentos, nem aviso nas portas. Só uma solitária e silenciosa cela. Onde sou almejado por inúmeros pares de olhos incandescentes.

Desvio a vista para outros pontos de minha solitária. Uma grade, um cobertor, e um único recipiente que ora recebe água, ora comida, ora outros detritos. Além dessas coisas, somente eu e um furo na parede. Aproximo-me. Firmo uma única vista à procura de coisa nenhuma naquele furo na parede. Encontro algo. Introduzo dedos em pinça e com sofreguidão resgato meu valioso objeto. É a fração de uma página. Com dúzias de palavras.

Os olhos sedentos dos outros presos faíscam atenção sobre meu raro exemplar impresso. Desdobro com ansiedade e cautela. Reconheço signos e caracteres. Ninguém ali sabe a pólvora que resulta de pelo menos duas letras que se juntam. É uma mensagem. Ouso anunciá-la a todos os ouvidos presentes.

Daquele amarelado papel pode surgir minha definitiva condenação. Ou uma nova humanidade.

Sem destino

Marcos Morgado 25/10/05

Não importa o que acontecer, eles jamais ficarão juntos. Queiramos ou não, definitivamente eles nunca irão se encontrar. Kátia e Flávio traçarão suas vidas inteiras numa eterna paralela. Desejaríamos intervir em seus destinos, mas nada o que fizermos poderá mudar isso. Contrário à nossa vontade eles não viverão felizes para sempre.


Vivem no mesmo bairro, mas seus apartamentos não miram um ao outro. Ela passeia com o cachorro na pista onde ele corre contra a brisa da noite. Mas sempre tomarão sentidos opostos. Seus olhos já foram atraídos para ela, mas o sinal do cronômetro destruiu a última oportunidade.

Ele, rumo ao trabalho, pegou o ônibus que Kátia por uns passos deixou de pegar. Ela já entrou na empresa dele, mas um outro é que a atendeu. Cruzaram-se no sinal, mas incidente nenhum os fez interceptar um ao outro. Flávio já ligou por engano para ela, que desligou ao menor sinal de equívoco. Lançou fora uma das poucas e maiores oportunidades para se conhecerem, mas isso jamais ocorrerá.

Ele escolhia produtos na prateleira do mesmo supermercado que ela, mas uma fila longa demais os distanciou. No estacionamento guardavam as compras que não chegariam a consumir juntos. Marcaram consultas com o mesmo médico, em dias em que não se encontrariam. Já estiveram muito próximos. Um guardou por dias a lembrança o perfume do outro. Não se esbarraram, jamais se pediram perdão. Já pisaram inúmeras vezes a mesma calçada. Jamais ao mesmo tempo. Viveram incomunicáveis.

Ela estuda a algumas salas da sala dele, na faculdade onde se formarão, em tempos distintos, pois Kátia se distanciará de Flávio por conta da matrícula trancada, por razões da recuperação prolongada da nova cirurgia de seu pai. No baile de um o outro não estará. Nem na cantina, nem no bebedouro, nem no café. Nem nas fotos de cada um.

Kátia pratica esportes no clube de onde avista Flávio a suar na quadra de tênis, enquanto despede-se ao telefone de quem a distancia ainda mais dele. É que Flávio jamais ligará pra ela nem receberá suas chamadas. Jamais trocarão os números, nem torpedos, nem confidências. Nem levarão a eternidade esperando o outro desligar primeiro. Jamais se atenderão. Não reconhecerão suas vozes. Em momento algum se ligarão só pra dizer “te amo”.

Cruzaram, em direção oposta, a escada rolante que a levaria a uma loja de perfumes que ele não a presentearia, e ele à escolha de um disco que em tempo algum ouvirão juntos. É triste dizer, mas não colecionarão qualquer memória em comum. Nunca se esquecerão de suas datas, seus gostos, suas predileções nem de seus apelidos de infância.

Por apenas um momento suas paralelas se aproximaram, sem se tocar, quando da fila de um banco, onde Flávio exerceu sua gentileza, a franquear lugar a Kátia, cuja gratidão não foi suficiente para guardar o seu nome. Foi a única vez que lembrou sua face, a usá-lo como exemplo de cavalheirismo à suas amigas. Foi também seu único encontro, se é que podemos considerá-lo como tal.

Ela acertou o final do filme que viu na primeira seção. Ele o viu na última, onde com ela não dividiria pipocas e emoções. E os beijos que não deram durante os créditos finais. Ela foi à pista de patins, ele ao restaurante. Foi por isso que ele não testemunhou as quedas dela, nem ela com ele dividiu o vinho no gelo. Não escolherão juntos prato algum. Nem trocarão músicas ou intimidades no guardanapo. Não compartilharão a mesma dança, nem o eloqüente silêncio no carro nem o calor do tapete da sala. Nem os primeiros raios da manhã seguinte. Ou os sorrisos e frutas do café da manhã.

Não escolheram as alianças que usariam por anos seguintes. Ele não se emocionou com o vestido de noiva dela. Não discordaram da cor do sofá nem estouraram as bolhas do plástico de que desnudariam a geladeira. Não tiveram nada em comum, nem a fome na noite, nem o medo do futuro, ou o lençol que não acolheu a ambos. Nem as manchas de tinta da cerca do quintal. Um não levará nada com as iniciais do outro.

Kátia não receberá o sobrenome que Flávio não colocará após os nomes que se escolherão pros filhos dela. A filha de Flávio não terá os longos cabelos negros de Kátia nem o filho dela herdará os cachos castanhos dele. Porque ele não apertará as mãos de Kátia, única ternura e força a sentir durante os sofrimentos do parto.

Se lhe é impedido de comemorar com os amigos os filhos que ela não lhe dará. Ou rever juntos os presentes que as visitas deixarão. Nenhuma fita, vídeo ou foto contém a ambos. Nenhum amigo os recebeu. Em nenhum momento assinaram algo em comum.

Assim traçam seus rumos eqüidistantes, e nada podem fazer para solucionar isso, pois jamais se encontrarão. Ela desconhecerá que sua paixão aumentaria toda vez que ele apertasse os olhos ao se deliciar com alguma coisa gostosa. Ele nem desconfia a possibilidade de ser o homem mais feliz do mundo todas as vezes que ouvisse aquela doce e inesquecível voz ao acordar. Nem a graça da risadinha dela.

Lamentavelmente Kátia e Flávio não escreverão história, ninguém os citará em versos. Não haverá música que os lembre. Nem caso que venha à memória. Não suscitarão ciúmes, nem saudades, nem romances, nem paixões.

Um viverá sem o outro. Pois esta é a história de duas pessoas que jamais se saberão existir. E nada o que fizermos poderá mudar isso.

O texto

Marcos Morgado 25/10/05

Preciso escrever. Menos por inspiração que por dever, faz-se necessário urgentemente escrever.

Posso ficar sem respirar, sem comer. Sem me lançar às indispensáveis expressões de afetividade, mas não sem escrever.

É imperioso e vital. Urgente.

Com a inspiração me agraciando visita, corro a buscar alguma coisa que me socorra na escrita.


Acho um lápis velho e mordido hibernando em uma gaveta da cômoda numa posição confortável, de onde o recolho.

Não sei se por retaliação à privação do descanso, ou por simples capricho, o lápis não risca o papel. Inclino-o com destreza. Resulta o mesmo. Uma pequena pressão a mais e lhe fraturo a grafite. Extraio, decidido, algumas farpas polpudas com um estilete, expondo nova ponta. Volto a meu ofício. Aninho o lápis com perícia e cautela. Antes da segunda sílaba, nova fratura.

Suspeitei abusar de minha força. Manejo o lápis com mais graça e leveza, mas ele não demonstra a menor gratidão. Retribui-me dividindo-se ao meio, desnudando o núcleo. Agora o lápis são três. Duas canas de madeira e um multifacetado núcleo de grafite, a explodir em minúsculos grânulos, rebelde, à menor tentativa de usá-lo.

Sem lápis, sem texto. Mas não diante de minha determinação. Parto para algo mais moderno. Reviro os locais vários onde uma caneta não deveria estar. Porque caneta é pra se ter ao lado, inseparável. É pra se ter dormindo ou banhando-se. Nunca se sabe quando uma idéia vem à vida. Não se sabe a hora do parto das nossas mais repentinas inspirações. Professo que caneta deve estar ao lado, segredando nossos mais íntimos pensamentos. Deve se tornar amiga. Ser braço direito. Ou esquerdo, depende do escritor.

Encontro uma distante de mim e de meus pensamentos em profusão. Tomo-a confiante. Corro afobado a ameaçar riscar o papel. Ela emudece. Não risca, não traça, nem fala. Resiste à torturante temperatura de um fósforo de que faço uso, na possibilidade de estar ressecada. Sacudo-a com veemência, tamborilo-a com ritmo sobre o papel. É em vão.

Quem imagina a que nível de teimosia pode chegar uma caneta? Estou certo que assim faz, a fim de levar-nos à loucura, para que ela, e não nós, tenha total controle sobre nossas ações. Disseco-a como a um batráquio, mas seus músculos estão retesos e minha incursão é vã. Não há vida nem esperança numa caneta que se negou a ser usada.

Desprezo-a em outro canto esquecido, também onde não deveria estar, e caço com diligência um antepassado seu, mais nobre e exigente. É uma caneta tinteiro. Meu trabalho reveste-se de pompa, ao premir no papel a ponta banhada a ouro, embebida da tinta que suguei do recipiente sextavado de vidro polido esverdeado. É tão requintado que pesquiso as preciosidades da língua, a fim de fazer jus a tão refinado aparato.

Porém minha polidez se esvai com a tinta que vaza sem a menor compostura, borrando o pouco que já redigi. Minha honra ultrajada palpita nas veias do pescoço. Traço breves planos de vingança. A nobre caneta e seu tinteiro são rebaixadas às profundezas de um latão de lixo, onde estão condenadas suas companheiras de motim.

Já com a mente e pensamentos em alvoroço regrido a uma pueril pena de escrever, que subtraio à força de uma inocente vítima que me espreitava da janela. Antes da desgovernada fuga, numa pontada de dor, a desventurada pomba me concede o instrumento para meus apontamentos.

Molhando a pena no restante de tinta que vasou da caneta desalmada, improviso uns primeiros riscos. A pena, como que com vida própria, se desvencilha de meus cuidados e flutua em direção à janela. Empreendo um bote em direção à fugitiva, que mais prudente que eu, alça vôo em direção à liberdade, manchando o céu azul com riscos esbranquiçados que deveria ter escrito em meu papel.

Nunca imaginei que escrever algo tornar-se-ia uma questão de honra. Antes por puro prazer e inspiração, agora por dívida e lavar de alma.

Retrocedi tanto no afã de minha escrita que imagino um momento chegar aos arcaicos traços de um carvão ou pedra riscando a rocha nas paredes de uma caverna. Julgo ter sido mais feliz o rude escritor na alvorada da vida humana, com seus mais toscos utensílios do que eu, desenganado em tentativas de resguardar as minhas idéias fugidias.

Há dois saltos na história da escrita: Os rabiscos das cavernas e a tipografia de Gutemberg. Lançarei mão dos recursos de um, antes de só me restar os recursos de outro.

Encontro, obsoleta, uma máquina de escrever encravada entre objetos igualmente esquecidos, qual mamute entre incontáveis fósseis. Sopro a poeira de sobre o alfabeto escondido entre mecanismos que não parecem cooperar. Repouso nervosamente as polpas de meus dedos sobre os caracteres que publicarão minhas idéias. Respiro fundo. Tento com sofreguidão recobrar as poucas frases que me restaram da já falida memória.

Já suspeitava. Peça por peça, a máquina se desfaz, numa avalanche de minúcias microscópicas. Salta um "d" depois do "p", um "r" combina a fuga com a exclamação, e pouco a pouco todos os suspeitos caracteres zombam de mim com suas ausências planejadas. Independentes, as molas explodem em várias direções, qual uma guerra onde o único sobrevivente sou eu. A máquina virou um montículo de ferragens e plástico, num monumento à censura de minha expressão. Tudo se reagrupou numa imensa e silenciosa escultura, no meio de minha sala conivente.

Há momentos na vida de um homem que delira em ser escritor, em que a saída é lançar mão de um pouco de tecnologia. O carvão na mão do hominídeo não foi um dia tecnológico? Dou vida ao computador, que me saúda com suas cores e sons, a esconder limitações que amargaria descobrir. Ele fala, lê, calcula e controla. Mas para meu crescente desespero não escreve. As teclas acendem luzes, apitam sirenes, comandam periféricos e rabiscam em segundos os traços enigmáticos de Monalisa. Mas não compõem uma palavra. A menor sequer. Que fosse um monossílabo, uma interjeição. Talvez um sim ou não. Duas letras, lado a lado bastavam. Nada. Recusa-se.

Cansei. Minha revolta avoluma-se num segundo e explode num ato desmedido e violento. Arremesso-me contra o aparato e fatio sua caixa, num espetáculo pirotécnico de luzes e ruídos, até fazer-se total silêncio, com todos os átomos e bits espalhados no tapete.

Com a explosão, a energia elétrica também me abandona. Silêncio e negrume total. Ouço minha respiração voltando ao limite tolerável. Volto a ser um homem com algum controle sobre as emoções. Dou-me por vencido.

Meus olhos se acostumam à escuridão. Aos poucos vejo os contornos de minha estante. Repousa, sobre a primeira prateleira algo de um branco fosco. Tateio com cautela. Era um giz. Minha inspiração retorna.

O homem sem nome

Marcos Morgado 27/10/05 9:00

Havia um homem sem nome. Ou com um nome impronunciável. Um nome que mais era um estorvo. Era um crime. Uma dura paga pelos poucos pecados de um homem. Uma sina cruel. Temo até em dizer o nome deste homem sem nome.

É que dizem que é amaldiçoado, que tem feitiço, pois seu dono não o pronuncia. Nem o relembra. Mexericam que dá azar, que não casou, não arruma emprego, está sempre à margem das amizades, longe das ruas, não abre crédito, nem compra a prazo. É por causa do nome. Franze a testa, com pesar, toda vez que o soletra. É um embaraço de oito letras. Astolrfo.

Não importa sobrenome, nem descendência. Ele já era Astolrfo, e isso é que importa. Ou incomoda. Um Astolrfo que já foi menino. Um menino sem nome. Davam-lhe apelidos, chamavam-no como quem chama um baleiro de trem. Assobios, palmas, estalar de dedos, “ô, você” ou qualquer coisa que o chamasse atenção. Menos seu nome. Seu verdadeiro e pesaroso nome. Nome daquele menino sem nome.

Tinha que um cérebro e um coração receber uma etiqueta com Astolrfo?

Já tentou namorada. Destas que juram paixão, que dizem amar além do mundo e da vida, que fazem prova de amor, que não largam as mãos. Até conhecer o nome. Não se pode amar um homem sem nome. Até conhecer o nome. E finda o amor. E foge a paixão. Se quebra todas as juras ditas. Se despede com lágrimas de remorso ou de quem se julga traída. Fosse outra mulher seria suportável. Por um nome, não. Astolrfo. Pode-se amar alguém assim? Como atrelar as mais nobres e emotivas frases de amor a algo tão desmedido e insuportável assim?

Partiu. Deixou o homem. Levou os discos, levou os livros, levou as fotos, o amor e o coração. Deixou o nome. Porque aquele nome era indigno de ser levado. De ser lembrado. De ser amado. Quem ama, ama o nome. Não se pode constituir família ou construir um lar sob um nome desses. Daí por diante todos seus sucessivos insucessos afetivos eram debitados ao seu nome.

Astolrfo não mais amou, não deu seu ombro a mais ninguém, nem suas mãos acalentou um rosto. Não noivou. Seu nome não era de um nubente. Não contraiu núpcias. Seu nome não mais estaria num bilhete nem marcado sobre outro nome numa árvore. Nem em placas de madeira, par com outro, sobre a lareira. Os meninos não suportariam ter um pai assim. Amoroso, protetor. Mas sem nome.

O endereço de seu mail era uma fórmula química ou matemática, com iniciais e números a substituir uma pessoa. Uma pessoa sem nome. Não se pode botar uma arroba após aquilo que não suportariam escrever. Ficam as letras e os números. E sua honra intacta. E as poucas mensagens que recebe. Cartas, nunca as leu. Não recebe malas diretas, nem propostas de cartões, nem assinatura de jornal.

No batismo, foi uma desgraça. Sem parentes, sem padrinhos, pois seria melhor ser pagão que entregar ao pobre do menino nome daquele. O padre negou-se. O menino recebeu o nome mais que por orgulho ferido dos pais do que por gosto. Pois era Astolrfo, e isso é que incomoda.

Chamadas no colégio evitavam seu número. Por precaução estava sempre presente. Recebeu dispensa militar pois ninguém segue carreira com ficha manchada. Seria batizado com sobrenome, mas aquilo estaria sempre lá, a manchar a ficha. É a ficha que importa. A nação não teria um soldado Astolrfo. Seria um soldado sem nome. Sem honra. Sem condecorações ou medalhas. Quem jamais ousaria gravar na medalha um nome daqueles? Sobrou. No exército, no amor e na vida.

E no trabalho. Passava nos testes com louvor. Impressionava nas entrevistas. Era garboso, o rapaz. Desses meninos bonitos. Meninos sem nome. Que vão-se bem até lhe pedirem a identidade. Assustam-se. Revoltam-se. E lhe devolvem o documento. Junto com a chance e a oportunidade. Pois nenhuma empresa tem em seus quadros um homem assim. Um homem que se chama Astolrfo. Um homem sem nome. Sem carreira nem futuro. Não pode haver futuro para um homem chamado Astolrfo.

No parto, na infância, na vida, no amor e na guerra não podia chamar-se Astolrfo. Seria feliz com outro nome. Realizado. Apaixonado. Empregado ou crivado de medalhas. O mais feliz dos homens. Com um nome.

Porque não um Carlos, um Antonio? Um simples José. Tinha de ser Astolrfo?

Um dia o homem sem nome não mais era. Esculpido no epitáfio apenas uma frase. E as datas, de quando recebeu seu nome e de quando o perdeu. Nenhum nome. Pois ali jazia apenas um homem. Um homem sem nome.

A máquina do tempo

Marcos Morgado 19/10/05

Ela estava ali, atrás do arbusto, com algumas ramas escondendo-a entre folhas e gravinas. Se não tivesse adiado a tarefa de aparar o mato cerrado, que domina os fundos do quintal, ela poderia ter sido vista por mais gente.



Mas estava ali, intocada, silenciosa e incomunicável. Não emitia som, nem faiscava as centenas de luzes que imaginamos deveria ter. Nem o presumível ninho de fios ou dúzias de alavancas que lhe emprestariam complexidade.

Era simples. Simplória. Confesso que a surpresa de encontrá-la inerte sobre a grama foi menor que a decepção de descobri-la sem o deslumbramento que uma máquina do tempo teria. Senti-me traído. Afinal não é sempre que nossa casa é escolhida para abrigar um portento tecnológico como esse.

Minha maior questão passou a ser não algo como “de onde veio?” ou “de que lugar no tempo?” ou mesmo “quem a inventou?” mas na verdade “que farei com ela?” A resposta me pareceu obvia. Uma máquina do tempo serve para viagens, obviamente, no tempo. Uma onda de calor e arrepios percorreu-me o corpo e alma. Como usá-la?

Inexplicavelmente a máquina tinha apenas um assento e um botão. Como emprestar credibilidade a uma máquina de tempo com um só botão? Um tão sonhado engenho merecia uns badulaques, umas tramelas e penduricalhos a mais para suscitar nossa curiosidade e espantar nosso ceticismo. Mas um mísero botão dava acesso a uma única opção: passado ou futuro. Deveria ser premido uma única e incômoda vez, levando-nos ou ao passado ou ao futuro. Apenas uma viagem.

“Que amarga escolha”, resmunguei. Ambos suspende-nos o fôlego e liberta-nos a imaginação. Quem jamais não desejou com toda intensidade da alma verter ao passado ou singrar velozmente ao futuro? Minhas mãos suavam e tremiam como os gravetos que riscavam a superfície do assento da máquina. “-Uma só opção? Qual seria? Pra que momento da linha do tempo eu seria levado?” Sentei-me sobre o veludo carmim do assento com a respiração sôfrega e interceptada.

O ribombar do coração parecia-me o ruído do pêndulo de um imenso relógio de carrilhão. Meus pulsos tiquetaqueavam. Os tímpanos tiniam. Meu quintal, com sua cerca verde por pintar, os ressecados gravetos e alguns pássaros seriam as únicas testemunhas de minha insólita viagem. “Uma só opção? Qual seria? Passado ou futuro?” É difícil desfrutar do tempo quando se tem seu total controle. É mais fácil apreciá-lo quando ele tem controle sobre nós.

Cogitei, de princípio, regressar a linha temporal. Revisitar o passado. Constataria minhas ações no pretérito. Meus cabelos perdendo a palidez, minha pele ganhando seu tônus original, as fendas e riscos de meu rosto abandonando-me. A juventude me invadiria pelas narinas, e seria doce ao meu paladar o vento fresco da manhã de minha vida, mais uma vez provado, pela ação daquela simplória máquina. Meu vigor regressaria uma vez mais, penetrando-me por minha coluna novamente ereta.

Lá, no momento passado, retomaria meus planos abandonados, meus engenhos fracassados, e vingaria cada um de meus sonhos despertos. Poderia mais uma vez encontrar as chances que desencontrei, recobrar as oportunidades de que não fiz uso, encarar corajosamente as mesmas condições de outrora, com a superioridade das experiências de então. Rever rostos agora ausentes, recordar amizades já perdidas, voltar a sorver as deliciosas emoções que já desconheço.

Trajar inéditas roupas, hoje bolorentas. Retraçar itinerários, reprogramar os encontros das visitas que não fiz. Completar o que ficou parcial, colar o que se partiu, agir de forma a não lamentar perder a oportunidade do perdão não dado. Abraçar intensamente a quem não mais tenho condição de fazê-lo.

Então poderia preparar-me um melhor futuro, que hoje é meu presente. Encontrar melhores soluções, degustar vitórias não alcançadas, usufruir as chances todas. Comparecer em fotos onde ausente. Fazer as viagens que perdi, confirmar os compromissos que não saldei, e amar mais intensamente a quem eu amo agora.

Que viagem fantástica seria! E atemorizante. Se fizesse o que não fiz, visse o que não vi, realizasse o que não efetuei, se fosse o que não fui, talvez não seria mais o que sou agora. Mudaria cristalizadamente o que sou hoje. Uma única mudança no passado e não me sou mais. Seria outro. Ou o mesmo, em outras condições. Piores ou favoráveis. Vivendo uma vida que não mais é minha. Desisti.

Não quero mais viajar ao passado. Não é seguro. Reescrever a história é desfazê-la. E escrever outra. Quero meu script do jeito que está. Asseguro-me de ser quem sou e isso basta. Nunca pensei-me feliz por ser quem sou. É que poderia ser pior. Ficamos como está.

Mas o que dizer do futuro? Ah, sim, o futuro vale a pena ser visitado. Pode-se mudar o que não foi escrito. Aperfeiçoa-se o script antes de atuar na cena. Testemunhar aquilo que seremos, sonhos que realizaremos, construções que edificaremos. Vermos nossos pequenos encomendados a seus destinos. Assombrarmo-nos com todas as incríveis descobertas e alcances que a humanidade experimentará. Ah sim, o futuro é uma empolgante viagem. Mas assustadora.

Lá nos aguarda as incógnitas e surpresas nem sempre agradáveis. Ali estará o inesperado de largos braços abertos. Com a boa nova em uma mão e uma possível desventura em outra. No tempo vindouro repousa a dúvida. A interrogação espreita. Ali estará crescentes cabelos brancos. Ali nos encontrarão nossos muitos anos. Ali nos aguarda persistentes rumores de nosso fim de vida. Nova desistência.

Não quero também singrar ao futuro. Não é prudente. Recolhi minha mão. Meu dedo pronto para premir o botão contraiu-se. Respirei mais fundo. Tal como um Janos confuso volto meus dois rostos para o passado e futuro. Aqui onde encontro-me, no rasgo dos dois tempos, é mais seguro. Mantenho-me inflexível e inabalavelmente ancorado ao tempo.

Por um momento considerei que a máquina tinha uma única opção. Ela, na verdade, tem um único botão. Mas duas opções. Uma é: passado ou futuro. A outra é: apertar ou não o botão. Eu já fiz a minha.

Abandono a máquina ao voraz apetite do tempo a devorar-lhe a carcaça em ferrugem e aos tufos de capim a ocultá-la ainda mais. Agora ela confunde-se com os objetos abandonados no jardim. Um chafariz já ressecado, duas calotas de um veículo que não trafega mais, algumas poucas latas de uma tinta que descolorou. Coisas que sofreram as cicatrizes do tempo, como eu.

Volto para casa, triunfante. Há tanto o que fazer hoje... Regresso como se o presente me fosse um bônus. Na realidade ele o é. Um sorriso me escapa. Creio que acertei na escolha.

Foi melhor não apertar o botão.