5 de julho de 2006

A Guerra dos Brinquedos

Marcos Morgado 03/07/06

Havia apenas duas caixas registradoras mecânicas, tão antigas quanto suas operadoras, mascaradas por pesada maquiagem. Estavam ali desde a inauguração da loja. O piso era de borracha desgastada preta. Quase todos soltos. Receberam os pequenos passos que hoje retornam, já maduros, com outros passos menores. São adultos com seus filhos, que quando crianças também já adentraram a loja em desabalada correria, a procurar dentre tantos, o brinquedo de seus sonhos.

Hoje trazem seus pequenos a percorrerem velozes entre estantes e gôndolas, vitrines e os muitos desesperados brinquedos, aos quais examinam sem a menor parcimônia ou cuidado. Manuseiam os indefesos objetos como destros torturadores nazistas.

Era uma loja que comercializava alegria, o orgulho de seu dono. Há brinquedos ali que podem estar desde os tempos iniciais da loja, abandonados quer por fealdade ou desconjuntura, quer por terem ficado cravados no tempo, trocados por novidades e engenhocas mais modernas e tecnológicas.

Na entrada da noite o ancião comerciante fiscalizava cada corredor e punha os brinquedos caídos ou testados em seus devidos lugares. Alguns pareciam sair por conta própria de seus endereços. Troca as pilhas dos brinquedos de teste, assegurando surpresa e alegria sempre novas, a cada inicio de dia.

Após minuciosa revista em toda loja, baixava os disjuntores um a um, negando luz a cada fila, até mergulhá-la toda na penumbra. O ranger do fechar da porta enferrujada anunciava a total solidão dos brinquedos e o silêncio cabal que se lançaria sobre a loja. Só o bip constante e pausado do alarme passava a ser ouvido.

Sobre as prateleiras jaziam os brinquedos perfilados em suas caixas ou amontoados em gôndolas e bancadas de promoção. Dormentes, aguardavam o amanhecer sem qualquer expressão ou desacordo. Emudeciam-se.

Silêncio. Escuridão. Um fraco facho de luz vindo do letreiro da tabacaria rasga a vidraça da porta, alcançando uma faixa da prateleira. Os inúmeros olhos de plástico dos brinquedos todos convergiam para lá.

Uma caixa range e tremula. Ela é única dentre todas as outras. Amarelada pelo sol de décadas, tem todas as suas bordas poídas. Seu plástico frontal já embaçado revela um astronauta cuja roupa espacial antes cinza apresenta uma cor inqualificável, razão pela qual jamais saiu daquela prateleira, por anos. Ninguém deseja mais astronautas, quanto mais em trajes cuja cor não recebe nome.

Foi lançado em comemoração da chegada do homem à lua, orgulho dos adultos e aspiração dos infantes da época. Todos queriam ter um. Até o desvanecer do sonho espacial. Foi trocado pelos primeiros robôs eletrônicos automáticos, com luzes no peitoral, voz metálica e rodinhas nos pés. Foi-se uma geração de astronautas. Aquele ficou.

Submisso por dezenas de anos, reúne forças no remorso do desprestígio ou no desejo de liberdade. Os fiapos já poídos que o prendiam à caixa esfarelada não resistiram ao vigor do viandante espacial e seu vislumbre do mundo exterior à loja. Aquela é a noite decisiva. Liberdade afinal! De mero objeto a um ser livre. E dono de seu destino.

A caixa trepidava como os corações dos outros brinquedos. Todos suspendiam a respiração. A aba lateral se abre. Com o fôlego ainda suspenso, miravam o feixe de luz a revelar um lacônico slogan com letras douradas sobre o fundo anil: “Rumo ao ano 2000”. Era o que de mais futurístico havia. Uma foto do passo de Amstrong marcados em solo lunar ilustrava a frente da caixa. Raios multicores saiam detrás do nome do astronauta. Haviam armas e adereços anexos como bônus. Ele os levará, por precaução.

Subitamente vê-se fora da caixa a luva e a bota, a prepararem impulso ao astronauta, que num movimento comedido deixa para trás seu antigo lar. Os brinquedos soltam unânimes ruídos de interjeição. O astronauta estava livre de sua prisão de papelão, e com urgência cronométrica salta da prateleira em direção ao espaço.

Inexplicavelmente sua queda é refreada por uma gravidade seis vezes menor, idêntica à da lua, residência dos sonhos de qualquer cosmonauta. Ele flutua e move-se qual ballet nos ares, aterrissando suavemente no piso da loja, como fora no satélite terreno. E desaparece em slow motion ao fim do corredor.

Atônitos, os brinquedos vislumbram a única oportunidade de libertação das mãos das violentas crianças e apressam-se a deixar suas caixas, sacolas e prateleiras. Centenas de caixas abrem-se simultaneamente. Outras tantas precipitam-se das alturas. Imitam seu precursor e escapam para todas as direções. Uns usam cordas de pular e deslizam para a liberdade. Outros lançam mão de skates ou patins para agilizar sua fuga.

A excitação e a balburdia irrompem na pacata loja. Em poucos minutos a confusão se generaliza e os brinquedos ficam incontroláveis. Pipas riscam o céu, furiosas com suas linhas cortantes. Bambolês detém vários animais aterrorizados. Bolas de gude, qual minas, lançam ao chão os menos precavidos. Piões riscam velozes uma trilha de colisões. Estalinhos crepitam qual chuva de fogo sobre as cidades de blocos de madeira. Uma quadrilha de heróis de plástico refugiam-se na casas de boneca.

Um monstro verde de borracha mole alcança o corredor de saída. Mas a única porta da loja está lacrada com cadeados e a fuga se revela impossível. A agitação dos brinquedos ativa o alarme. Desespero infernal se apossa da maioria.

Um sardônico stegossauro explode, num gravíssimo rugido, as várias prateleiras de vidro, pontilhando no espaço mil fragmentos letais, cuspindo morte e luzes multicores na refração do único facho de luz a iluminar a guerra.

Da seção de brinquedos raros libertam-se de suas caixas lacradas musculosos bonecos com cabelos e barbas quase reais. As etiquetas grafadas com a terminologia Falcon informam que possuem alto know-how bélico. Tomam de assalto a seção de armas, detendo canhões lasers e espadas cinzentas. Desviam um trem de seus trilhos e rumam em direção à saída. Usam um pequeno telescópio para antever o inimigo. A prosaica guerra toma ares de guerrilha.

Um robô semi-transparente oriental encurrala um ridículo palhaço de pano entre a bicicleta e um quadro-negro. A peleja seria desigual se o boneco maquiado não descobrisse, próximo e disponível, um poderoso sabre de luz, o qual alcança em uma única cambalhota. Ato letal. Não percebeu o alerta da caixa: “Pilhas não disponíveis”. A peleja foi desigual. Morreu o palhaço num último polichinelo.

Sem mostrar condescendência ou misericórdia, a esguia bailarina encena passos de ninja, saltando da romântica caixinha de música para a sangrenta arena de guerra. Dois pelotões rivais emergem da caixa escrita Combate, traçando planos de ataque à bandeira adversária. Canhões expelem mísseis e projéteis desde navios e submarinos estrategicamente posicionados no tabuleiro de uma Batalha Naval.

Um duvidoso pônei com crina em arco íris, negando sua aparência dócil, desfere golpes para todos os lados, obrigando legiões de esquálidas bonecas a entrar em guerra. Uma turba de motoqueiros risca os corredores, onde enfileiram-se carros de combate camuflados. Carros de Bombeiros com mangueiras d’água debelam o fogo atiçado nas caixas de papelão deixadas na deserção. Bolas de boliche provocam a demolição de quartéis generais erguidos em peças de Lego. Vítimas são socorridos com a caixinha de primeiros socorros, com estetoscópios de mangueira e plástico.

De cima de uma estrutura pontiaguda de metal grosseiros movimentos do gigantesco Kong lançam abaixo fumegantes aviões lançados a partir de alguns móbiles presos ao teto, expondo inocentes bebês de corda e passivos ursinhos de pelúcia. Um burrico oco de plástico marrom escuro lançava, num só e repentino coice, ferramentas como armas em múltiplas e surpreendentes direções.

Duendes recorriam a uma caixa de Palavras Cruzadas a fim de cifrar suas mensagens. Walkie-talkies verborragem palavras de ordem enquanto um pequeno computador a pilha transforma-se em central de inteligência aos exércitos de chumbo. Alguns detêm canetas-lanternas que lançam luz sobre trincheiras de rubras almofadas em forma de coração. A guerra não poupa universais símbolos de afetividade.

Quem pode imaginar como conseguem ser violentos reles brinquedos quando tornam-se verdadeiras usinas de guerra?

O alarme ecoa na vizinhança, atraindo como isca ao idoso comerciante, que ainda na madrugada retorna ao campo de guerra. O ancião dono da loja depara-se aturdido com um tapete de estilhaços de vidro, prateleiras envergadas, cortinas rasgadas, cacos de plástico e uma nuvem de parafusos e molas. E vários brinquedos caídos e destroçados.

Era o sinal. Aguardava o momento de encerrar seu negócio e baixar definitivamente as portas. Bastava um pequeno sinal. “Um arrombamento e depredação geral provocadas por vândalos na madrugada era um sinal convincente”, pensava.

Aguardaria tão somente a manhã, quando doaria todos os brinquedos aos pequenos carentes e hospitalizados. E finalizaria sua historia como comerciante de brinquedos. Não quis dar queixa policial, pois o acontecimento era um feliz prenúncio. Além do que não havia qualquer vestígio de arrombamento ou furto.

Recolocou pacientemente cada brinquedo em seu lugar, repondo caixas e limpando os vestígios de pequenos incêndios. Tudo voltou à normalidade. Após apagar a ultima lâmpada baixou lentamente as portas de ferro enferrujado, com satisfação e saudades. Foram quase 40 anos em que comercializou sonhos e alegria.

Fez-se penumbra e silêncio novamente em toda a loja. Os brinquedos todos engoliam o insucesso da insurreição. Voltavam às suas prisões e logo ao amanhecer as pequenas mãos os fariam escravos. Triste sina a que um brinquedo está obrigado: submeter-se aos caprichos ou violências dos pequenos.

Escuridão e silêncio ensurdecem os tristes brinquedos. Ninguém ousava mover-se. Ao virar da madrugada, todos suspendem a respiração. Completamente imobilizados.

A caixa do astronauta tremula.