Urbi et Orbis
Marcos Morgado

29°59'15.08"E
Myra, Turquia
Krmar tem um manto multicor sobre si, obra de tapeçaria turca. Cabelos negros esvoaçam ao vento que desalinha os verdes cabelos das montanhas. Rebanhos pontilham de branco e mel as paisagens aveludadas dos montes que avista de sua janela. Vê cemitérios de longa ancianidade cravados nas frias costas rochosas. Nas tumbas de Myra o sangue e a hereditariedade de Krmar repousam num sono ancestral, longe do furor das vias ancarenses e dos navios que rasgam o Bósforo.
Recebe a energia matinal de um cacik ao funcho e páprica, purê de frutas, queijo branco e mel, sorvendo as borras de chá negro. Desfila, preguiçoso, sua silhueta ao lombo de um dromedário sobre os casebres rústicos marcados a bala das milícias curdas. Krmar ainda não entende, mas jamais poderia escolher sua fé, sem deixar sua vida sobre o chão que acalenta tantas outras. O frio da noite é cortado pelo fio de uma toada lúgrebe, entoada do alto de uma antiga mesquita.
Seu pai não amou sua mãe, nem sua mãe ansiou por seu pai, mas casaram-se pelo comércio de seu avô e pela vida de sua avó. Metade de sua família alcançou o mesmo destino e Krmar aprendeu que nascer não é sempre fruto do ato de amar.
Brinca com a arma que ganhou aos seis anos, alcançando, ardilosamente espreitado, numerosos inimigos fictícios. Prepara-se em sua tenra e vertiginosa idade para correr mundo estampado no noticiário internacional como valente e solitário guerreiro, pontilhando fragmentos sobre vitimas inocentes como sua infância.
11°33'0.00"N
23° 6'0.00"E
Kabar, Sudão
Djani joga pedras num tabuleiro imaginário sobre o manto vermelho da terra ressecada, qual sangue derramado, vertido das veias dos filhos da África. Tem a pele negra e reluzente, ardendo sob o sol escaldante, e os sulcados pés coloridos pela areia ruiva que os cobre como a uma bota.
Olhos como duas pérolas negras, profundos e ofuscantes. Nele refletem-se dunas a desfazerem-se com o vento da noite fria. Coleciona raízes secas e degusta escorpiões grelhados na fogueira de gravetos duplamente ressecados.
Jamais comeu pêssegos. Viu uma única vez um khawadja. A imagem fotografada em sua mente lhe recobra inesquecíveis perguntas: “Como pode ter uma pessoa a cor branca?” “Será que podemos enxergar a sua alma?” “haverá água em seu mundo?”.
Viu seus pais, parentes e seus 16 amigos tracejados por vorazes animais ou por mais ainda vorazes balas inimigas. Não sabe que está a poucos dias de ser o próximo. Expõe seus dentes de marfim num sorriso inocente ao ver um fio d’água a 45 quilômetros de seu casebre de palha, barro e toras vergadas.
Sonha um dia levar um cântaro de água para à noite dessedentar a si e ao seu cão. Não sabe haver céu, onde moram os anjos. Sabe apenas haver chão, onde morrem os homens.
78°15'10.22"N
15°42'28.62"E
Moskushamn, Svalbard
Yodl nunca viu seu chão sem neve. Seu imenso mundo branco poucas vezes recebeu os tímidos e rápidos raios de sol. Atiça a matilha a uma crescente corrida contra o tempo, com seu trenó riscando um constante e alvo itinerário de onde avista parca vegetação.
Já ouviu sua voz refletida nas geleiras, assim como reflete a constante e ofuscante luz de um branco invariável. Aponta seu lar num alvo borrão do mapa. Yodl vive cercado de águas glaciais por todos os lados.
Imutáveis rochas cobertas de alvo manto o rodeiam trazendo o sol, que por meio ano brilha na noite desta terra sem árvores. Poucas vezes vê seus pais, que extraem o negro carvão, no coração negro das minas escuras, como escura é a noite de outra metade do ano em seu frio planeta escuro.
Apanha pinhas que guarda em sua pele de foca estampada na parede de tábuas de seu pequeno e aconchegante quarto. De sua pequena janela divisa crianças que ameaçam brincar, de faces rubras como risonhas maçãs. Quem ousaria sorrir nesta terra de duas estações? Parece improvável, mas Yodl já sorriu. E deseja alcançar o dia em que encontrará uma nova razão para fazê-lo.
15°55'38.31"S
5°43'2.16"W
Jamestown, Saint Helena
Jewel cobre os olhos com a mão. Cancela a luz ofuscante do sol e mira o horizonte. Do seu ponto de vista, a terra é azul, como do de Gagarin. Ou a terra é água. Ultimo lar do francês imperador, sua pátria é um microbial ponto flutuando no oceano, cercado do interminável ruído do mar. Não coleciona conchas nas praias, pois em seu mundo praias não há. Sua pátria é uma ilha, assim como seu coração.
Seu calmo e invariável habitat é um parto da violência vulcânica. De onde quer que se olhe seu horizonte é céu e mar. Quadro verde azul grafando a retina. Dia e peixes como estrelas no mar. Noite e estrelas como peixes no céu.
As emoções de Jewel são díspares e inesperadas, como as variações das altas montanhas cortadas por profundos e misteriosos vales. Nos imensos paredões de rocha vulcânica rompem violentas ondas, pintando o ar com um longo arco-íris, num som constante e rítmico, grafado na memória de Jewel, como a voz de sua mãe. Ou como a voz do vento cortante com cheiro de sal.
A pequena cidade de Jewel tem apenas uma estrada, qual veia aberta sobre toda ilha, onde flui a vida e o tempo de seu povo. Que pode fazer uma pequena menina num lugar que é todo rocha, todo céu e tudo mar? Seu mundo cabe todo numa pequena estrada, sulcada num raso vale, nas costas nuas da ilha, cravada na imensidão azul do centro do planeta água.